domingo, 22 de agosto de 2010

MEMÓRIAS DE UM HOSPITAL PSIQUIÁTRICO

COLEÇÃO COMPORTAMENTO HUMANO




MEMÓRIAS DE UM HOSPITAL PSIQUIÁTRICO
Relatos sobre casos ocorridos no interior de um hospício



1ª EDIÇÃO


Luiz Gonzaga de Freitas Filho











NOME – E D I T O R A

Biografia do autor: (orelha do livro)

Luiz Gonzaga de Freitas Filho é médico formado pela Universidade Federal do Pará (1970); com curso de formação didática em Psicanálise pelo Grupo Brasileiro de Psicoterapia Analítica de Belo Horizonte/MG (1979/1983). Médico chefe da Unidade Sanitária de Maués e assistente na Unidade Hospitalar de Parintins - FSESP/AM (1971/1973) coordenou e executou programas de saúde pública. Dirigiu a Divisão de Saúde e Higiene da Secretaria de Saúde do então Território Federal de Roraima (1973/1974) e participou como assistente no Curso de Administração em Saúde Pública promovido pela SESPA/OPS/OMS. Em 1974 chefiou o serviço de socorros de urgência do mesmo Território Federal de Roraima. Em 1976 dirigiu o Hospital da Paranapanema S/A durante o período de abertura de um trecho da rodovia Perimetral Norte. Participou como médico na Unidade de Saúde Eletronorte durante o início de implantação da usina hidroelétrica de Tucuruí/PA na execução de trabalhos de Clínica e Assistência Materno Infantil. Foi, de 1976 a 1985, psiquiatra da Escola FEBEM assessorando e executando trabalhos de reabilitação em comunidade terapêutica para menores Infratores. Durante o período em que viveu na Amazônia fez várias incursões em aldeias indígenas, coletando informações e estudando os trabalhos etnográficos de Pierre Clastres, Bronislaw Malinowski, Protázio Frikel, entre outros etnólogos e antropólogos, que produziram trabalhos de campo. Atualmente desenvolve e aplica em consultório metodologia própria para uso em psicoterapia analítica e medicina psicossomática, criando alternativas de profilaxia em saúde mental com seus Grupos de Apoio Familiar.

É autor dos trabalhos:

F"Viver eu quero, conviver é preciso!" (texto).
FRelação de Qualidade (treinamento de pais e educadores para prevenir comportamentos reativos em crianças e adolescentes (slides eletrônicos do Power Point)).
FA Origem da Violência: Uma contribuição ao estudo do comportamento violento.
FDiário de um hospital psiquiátrico

Em parceria:
FManual da Comunidade-Escola: uma experiência bem sucedida em comunidade de menores infratores (texto).
FAprendendo a Ensinar: uma experiência com alfabetização de adolescentes marginalizados (texto).
FAmadeu, um caso especial: uma experiência com menor considerado infrator de “alta periculosidade” (texto).


MEMÓRIAS DE UM HOSPITAL PSIQUIÁTRICO
Contos sobre casos no interior de um hospício













































Luiz Gonzaga de Freitas Filho











MEMÓRIAS DE UM HOSPITAL PSIQUIÁTRICO
Contos sobre casos no interior de um hospício






































NOME – E D I T O R A


Capa: do autor
Copidesque:
Revisão:


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação ()
()

Filho, Luiz Gonzaga de Freitas.
A Origem da Violência: Uma contribuição ao estudo do comportamento violento/ Luiz Gonzaga de Freitas Filho – Sete Lagoas, MG E d i t o r a, 1999. - (Coleção Comportamento Humano)

Bibliografia.
ISBN 00 000 0000 0

1. Comportamento 2. Violência 1. Título. II. Série.


00 - 0000 CDD 000.00



Índices para catálogo sistemático:

1. Cultura e Comportamento: Sociologia 000.00
2. Comportamento: Aspectos sociais 000.00
3. Comportamento e cultura: Sociologia 000.00


1ª edição
1999

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Telefones: (019) 272 4500 e 272 4534 Fax~ (019) 272 7578
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Proibida a reprodução total ou parcial. Editora afiliada a ABDR.

















COLEÇÃO COMPORTAMENTO HUMANO



Comportamento é ação de pessoas, é um fenômeno que envol¬ve, antes de tudo, gente. É um ramo que abrange várias ciências concomitantemente e não pertence ao campo das ciências exatas. Transcende a esfera das meras relações econômicas.

A tendência da humanidade é a de se concentrar nas grandes cidades, o que torna esses núcleos humanos muitas vezes fonte de violência e neurose urbanas.

Dado esse quadro, vemos atualmente deteriorar-se cada vez mais as relações humanas, proporcionando ao indivíduo a experiência da violência nessas relações, que o distanciam da convivência harmoniosa e produz alterações no seu psiquismo e no seu meio ambiente, tornando-o cada vez mais hostil e inadequado para o bem estar em comum.

Esta coleção pretende ser uma ferramenta de reflexão para todos os que se interessam pelo fenômeno da violência e pelos fatores que determinam sua existência e expansão, assim como para os profissionais atuantes no estudo dessa área, atendendo à demanda por bibliografia nacional e por novas visões da dinâmica social que possam unir vários interesses acadêmicos no grande desafio de fazer com que, no futuro, a vida em sociedade e sua compreensão não seja mais um privilégio de minorias, mas um direito de todo cidadão.

Coordenador



























































































Este livro é dedicado às pessoas que conviveram ou ainda convivem com portadores de alterações do comportamento. Relata situações dramáticas e cômicas que costumam ocorrer em clínicas e hospitais psiquiátricos.



































































AGRADECIMENTOS
_______________________
Aos amigos e desconhecidos que, como eu, optaram por compreender os caminhos do comportamento humano.
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À minha mãe com quem sempre tive muita dificuldade de contato, mas a quem devo grande parte da minha experiência e, com certeza, a minha vida.
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Ao meu pai, alicerce do meu caráter e médico humanista que me deu os primeiros exemplos de bondade e sabedoria.
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Aos meus irmãos que, mesmo estando longe, não saem da minha lembrança.
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À minha mulher Ziléa e a os meus filhos Juliana, Fernanda e Luiz Alexandre, um abraço e um beijo pela paciência com que toleram meus momentos mau humor.













SUMÁRIO


Relatos sobre casos ocorridos no interior de um hospício 1


Apresentação e objetivos 12
CAPÍTULO I 13
Os primeiros tempos 13
Percepção da realidade 14
O individual e o coletivo 16
Entrando e conhecendo o hospital 18
CAPÍTULO II 22
Os loucos e o governador 22
A professora de mitologia 23
Ruídos na noite 24
O sanfoneiro 26
O candidato 27
CAPÍTULO III 30
O homem dos sacos 30
Greve no ambulatório 37
O trambiqueiro 40
CAPÍTULO IV 44
O homem-árvore 44
A promessa 46
O filósofo 51
CAPÍTULO V 54
O orador 54
A experiência com drogas 57
A namorada do residente 59
CAPÍTULO VI 62
A saída do hospital 62
Profecia, ruínas e missão cumprida 66
Discurso civilizado e idéia de reconstrução 67




Apresentação e objetivos


O objetivo deste trabalho é mostrar alguns aspectos do funcionamento de um hospital psiquiátrico antigo e trazer de volta à memória alguns acontecimentos reais, dramáticos e cômicos, ocorridos no seu interior. Essa é uma leitura leve, sem a preocupação acadêmica de aprofundamento maior; uma forma de mostrar como sentem e pensam os internos e como lidam os residentes frente a situações inusitadas.

O tempo em que convivi nesse hospital psiquiátrico como acadêmico residente, lidando com pessoas que, além de pobres, eram chamadas de loucas, serviu para me ensinar que a loucura é uma convenção criada pela civilização branca; que os remédios utilizados para curá-la são ineficazes e camuflam as verdadeiras razões que produzem a desagregação mental; que o termo “doença mental” é desprovido de qualquer sentido lógico e não é uma doença, mas um estado reativo adquirido pelo acúmulo de tensões que o homem experimenta desde sua infância, vivendo numa sociedade que o despreza e esmaga seu afeto e sua dignidade.

Durante minha permanência no extinto hospital público Juliano Moreira, em Belém do Pará, aprendi como não se deve ajudar as pessoas que manifestam comportamentos reativos, através do uso de remédios e diagnósticos. Lá encontrei também profissionais que, como eu, não acreditavam nos caminhos arcaicos que a Psiquiatria Clínica seguia na época e que ainda continua seguindo até hoje.

Foi uma ótima idéia ter feito um curso de formação didática em Psicanálise e ter me submetido a duas psicoterapias: uma individual e outra grupal. Melhor ainda foram as incursões que fiz em aldeias indígenas da Amazônia e os livros de Antropologia que li durante esse percurso, que me ajudaram a esclarecer muitas dúvidas sobre o comportamento individual e grupal dessas sociedades e, sobretudo, das sociedades civilizadas. Não fosse isso eu até hoje estaria receitando remédios e internando pessoas, numa época em que os avanços do conhecimento levaram a considerar o cérebro como um potente órgão computacional que processa as informações internas (do corpo) e externas (da relação social) para organizá-las de forma coerente com as necessidades vitais.





Luiz Gonzaga de Freitas Filho



CAPÍTULO I
Os primeiros tempos







Agora que já se passaram quase quatro décadas que eu entrei pela primeira vez em um hospital psiquiátrico público, posso contar as lembranças desse tempo. Todos os casos narrados aqui aconteceram realmente, apenas os nomes dos personagens foram trocados. Alguns detalhes, desbotados pela memória, podem ter sido omitidos ou alterados, mas não chegarão, com certeza, a mudar o significado e o conteúdo autêntico dos relatos.

É possível que tenham sido dois os motivos que me tiraram do comodismo e me fizeram escrever. O primeiro pode ter sido o temor da velhice e o prazer de reviver a juventude; o segundo, a necessidade de transferir experiências obtidas na prática diária e a obstinação de me opor ao mito da loucura e das suas instituições.

Como estudante universitário acreditei em muitas idéias e conceitos escrito nos compêndios acadêmico e difundido pela boca dos arautos da “doença mental”. Foi preciso vivenciar muitas situações reais para, então, descobrir o véu do discurso tradicional e encontrar, por detrás dele, as verdades que não podiam ser anunciadas para os jovens estudantes naquela época. Hoje posso, com relativa clareza, falar dessas verdades com naturalidade e afirmar para os que ainda têm dúvidas, que a loucura é um conceito ultrapassado e obscurantista defendido por fanáticos ou ingênuos que ainda aceitam a existência dos hospitais psiquiátricos como local de segregação e isolamento; essas instituições são a latrina e a vala comum onde são depositados vivos, pela sociedade civilizada, os restos humanos que sobram do “progresso tecnológico” e do “processo de desenvolvimento”.





Percepção da realidade

Percebi que não são os comprimidos, as gotas e as injeções os verdadeiros remédios que atingem o centro dos distúrbios da emoção e do sentimento humano. Compreendi também que a grande maioria das alterações do psiquismo não são causadas por bactérias, vírus, desvios bioquímicos e processos degenerativos. É a própria ausência da igualdade de oportunidades e de solidariedade que produz e mantém as chamadas “doenças mentais”. Acredito que o amor e a generosidade, quando acompanhados de um sólido conhecimento científico e empenho pessoal, são mais eficazes e produzem resultados certamente mais efetivos.

Concluí - como muitos outros profissionais já o fizeram - que o falso discurso científico, que o lucro voraz obtido com o comércio de medicação psiquiátrica, que a prática de manter pessoas semi-sedadas com o uso de ansiolíticos, tranqüilizantes e antidepressivos são resultado de uma mentalidade individualista e consumista que altera a convivência saudável e impede a manutenção de uma vida equilibrada.

Como um cavalo que quebra a perna e não serve mais para o trabalho, o “nervoso” e o “doente mental” têm o mesmo destino: o abandono. Os donos do saber os condenam ao uso interminável de drogas para “aliviar” seus protestos; os desenganam preconizando a sua morte social, até não possuírem mais dinheiro para manter a indústria da doença.

As falsas técnicas e conceitos alardeados por comerciantes de livros, religiões salvadoras e cursos de auto-ajuda, funcionam como ópio para a esperança dos que acreditam na prosperidade súbita, no autoconhecimento mágico, no empírico poder da mente e em muitos outros “pacotes lucrativos”. O comércio da venda de ilusões para a multidão de decepcionados com a nossa civilização desequilibrada, gera acumulação de riqueza material e pobreza de espírito para aqueles que o gerenciam.

Atualmente é fácil constatar o pulular dos misticismos de diferentes matizes e de idéias e conceitos híbridos em que uma combinação de pseudociência, religião e ocultismo se misturam, compondo um verdadeiro “coquetel salvador” para os sem esperança. Apregoam as “energias positivas” (?), os encontros miraculosos com a felicidade, com a harmonia cósmica, com o sucesso individual. Pirâmides, cristais, gnomos e mapas astrais mantêm as ilusões na crença de um mundo melhor, onde cada um, individualmente, possa encontrar as soluções mágicas desejadas para si. Essas fórmulas, quase sempre, não premiam as soluções realistas para a vida coletiva; enquanto isso, a sorte ou azar dos apostadores aumentam o comércio e a produção das quinquilharias ligadas a essas viagens da imaginação.

Ninguém está disposto a construir o mundo da convivência sob parâmetros realistas. É preferível sonhar! O alicerce da realidade, que sustenta os sentimentos, princípios e valores coletivos exige esforço e não dão lucros. Ninguém quer ser, a maioria quer obter. Isso me leva a compreender porque na vida social dos indígenas não circulam o lucro, as fantasias materialistas, as desigualdades e a violência. Talvez eles tenham descoberto, há milênios, que para conviver humanamente e produzir bem-estar basta sentir, pensar e agir coletivamente. Não vi “nervosos” nem “doentes mentais” entre eles; talvez porque, no mundo deles, a razão da Vida esteja apontada para a direção correta da convivência humana solidária, onde o todo vale mais do que a parte. A parafernália civilizada deve ser vista por eles como um hospício: de um lado os normais poderosos, de outro, os loucos desesperados. É possível que um dia acordemos dos nossos sonhos e, por sobre nossos castelos de areia, possamos construir uma nova civilização sob o alicerce sólido da realidade coletiva.











O individual e o coletivo

É possível que a vida humana esteja direcionada para dois pontos essenciais: a sobrevivência e a convivência. O primeiro ponto está representado pela existência de um corpo material – o organismo. O segundo ponto amplia a existência do primeiro conferindo-lhe a capacidade de ser animado (anima=alma) e de coexistir com outros organismos também animados. Portanto o sentido maior do organismo é a sobrevivência, enquanto que o ser-animado encontra sua razão maior na convivência.

Se olharmos o corpo sob uma visão puramente biológica iremos compreendê-lo como um conjunto de órgãos cujas funções foram projetadas geneticamente para manter a vida material equilibrada - a saúde orgânica. Ao concebermos um ser-animado alargamos essa visão restrita e, vendo-o na interação com outros, passamos a admitir a necessidade da sua existência em grupos humanos estáveis, aquilo que chamamos de vida social. As características dessa associação em grupos, por sua vez, irão determinar não apenas sua sobrevivência mas, sobretudo, a qualidade de vida que poderá ter.

Observando a vida social dos grupos humanos “in loco” – e através de estudos etnológicos – percebemos muitas diferenças entre o conviver coletivo das sociedades naturais e o conviver individualista nas sociedades contemporâneas. Apontamos o processo civilizatório como o mais provável divisor de águas nessa composição de diferenças e a criação do Estado Nacional como instituto que permite e mantém as desigualdades sociais – um equívoco institucionalizado.

A sobrevivência sempre foi um forte estímulo mobilizador do comportamento humano. Em épocas remotas, quando o homem só podia contar com o ambiente natural para sobreviver, necessitava da força do grupo como elemento indispensável para manter-se vivo. O individuo sempre precisou estar ligado a grupos para existir, sobreviver e identificar-se como individualidade.

É possível que os avanços tecnológicos – desde a invenção da flecha e da roda até a corrida espacial – produções humanas, tenha contribuído fortemente para as mudanças nas relações dos grupos humanos atuais. É preciso admitir que a divisão dos bens produzidos e da riqueza material é tarefa difícil. Exige qualidades nem sempre a disposição de todos os indivíduos.

Pierre Clastres, etnólogo francês que estudou os índios Ianomâmi refere-se a aspectos profundos da sua organização sócio-politico-religiosa contida no cerne de sua vida tradicional. Uma profunda sabedoria extraída da síntese do comportamento desse povo – que não conhece e nem aceita a estrutura política do Estado Moderno - poderia ser traduzida pela seguinte expressão: “Seres humanos nunca estarão preparados para lidar com grandes volumes de poder. Quando isso acontece eles perdem a razão e se tornam violentos. E todo o povo sofre”.

Foi com essa visão que conseguimos conceber o caos que representa a vida civilizada: na existência dos hospitais psiquiátricos, das instituições prisionais e dos lixões habitados das grandes metrópoles. Se os índios Ianomâmi estiverem com a razão, nós os civilizados, precisamos descobrir outras formas de conviver. Essa é uma questão antiga que remonta a muitos séculos, antes mesmo do aparecimento do Cristo.



























Entrando e conhecendo o hospital

Naquela época era mais fácil um estudante de medicina conseguir uma bolsa de estudos para trabalhar e morar, como residente, num hospital psiquiátrico público. Quem estivesse no quarto ano da faculdade poderia pleitear uma vaga e ainda recebia uma ajuda de custo próximo de um salário mínimo. Isso era uma verdadeira mina para os estudantes. Após ter conseguido a bolsa passava a residir com mais quatro colegas numa das dependências do prédio hospitalar que ficava logo à frente e à direita do corredor central de acesso. Camas e guarda-roupas ficavam numa ampla sala sem divisórias que dava um tom coletivo ao ambiente. Ao lado havia uma saleta que servia de cozinha, refeitório e banheiro. Ali era uma verdadeira casa, um mundo particular, uma república que permitia ter uma vida semelhante à de muitos outros estudantes; onde se podia descansar, ler, conversar, receber visitas. A única diferença era que, por estar situada no interior de um hospital psiquiátrico, tinha cerca de hum mil e quinhentos vizinhos que nem sempre estavam com a cabeça no devido lugar.

O antigo e amplo casarão hospitalar, de arquitetura neoclássica, ocupava uma quadra inteira, cerca de dez mil metros quadrados e abrigava os pacientes separados em duas alas: do lado direito ficava a ala feminina com aproximadamente oitocentas pessoas e do esquerdo a ala masculina, com cerca de setecentos ocupantes. Os médicos também se dividiam em duas categorias: os que possuíam idéias antigas e praticavam a psiquiatria tradicional com seus diagnósticos, remédios e eletrochoques e os que defendiam idéias novas e propugnavam por mudanças e por uma visão mais humanista e integradora em relação aos internos. Por ser um hospital pobre – contava com poucos recursos do governo estadual – funcionava também como se fora uma Santa Casa de Misericórdia, pois outros hospitais costumavam recusar atendimento à “doentes mentais”. Clinica geral, pequenas cirurgias e até partos eram feitos, sempre que possível, no próprio hospital; só em casos especiais os doentes eram encaminhados para receber atendimento externo.

Entre os internos havia o grupo dos “muito pobres” que não mais recebia visita dos familiares e não contava com qualquer atenção ou tratamento no hospital. Esses esquecidos eram chamados de grupo da abandonoterapia. Outro grupo era o dos “menos pobres”, que ainda tinha familiares e visitas, recebia algum tipo de atenção e tratamento e ainda se esforçava para fazer contatos com os funcionários, médicos e residentes. Eram mantidos pela previdência social. Outro grupo era constituído de pacientes particulares, pouco numeroso e que gozava de maiores regalias entre alguns médicos e funcionários – eram os pagantes, cuja permanência costumava ser muito curta.

Os residentes escolhiam apoiar e seguir a linha progressista dos médicos e funcionários voltados a provocar mudanças na estrutura e funcionamento do velho hospital. Embora simples estudantes possuíam um certo poder dentro do hospital pelo fato de residir lá dentro. Seguiam um sistema de plantões de vinte e quatro horas feito em rodízio, com isso estavam em contato permanente com internos e funcionários. Havia também uma contínua troca de informações entre residentes sobre fatos e ocorrências do dia, o que os deixava razoavelmente atualizados. Os outros funcionários e a direção, ao término do expediente diurno, retornavam para as suas residências e voltavam no dia seguinte. Após o horário de expediente normal o residente de plantão assumia a direção, podendo ser chamado a qualquer hora da noite para decidir sobre assuntos ligados ao funcionamento normal das atividades.

Em três anos de convivência com internos, médicos e funcionários fica mais fácil compreender como é doloroso não ter família, ser pobre e perder a condição de ser tratado com a dignidade que merece um cidadão ou cidadã. O rótulo da “doença mental” determina não apenas uma perda dos direitos, mas, sobretudo, das três grandes aspirações desejadas pelo homem civilizado:

• Perda do poder político (restrição da vontade, do ato, da liberdade).
• Perda do poder econômico (restrição da administração dos bens)
• Perda da dignidade pessoal (cidadania, restrição da identidade social).

O alienado mental, como ainda é chamado, perde sua condição legal de cidadão, perde o poder sobre seus bens materiais, perde o contato com sua família e com a sociedade e cria dentro de si um mundo próprio, onde imagina “compensar” todas as perdas que o seu delírio possa recuperar. Na verdade ele ganha a pobreza, o abandono e a desatenção. Perde a cidadania e ganha outra condição – a de louco.

Um levantamento realizado no hospital com todos os internos confirmou a existência de dois grupos de pacientes: os que ainda conseguiam estabelecer algum contato pessoal e os que não conseguiam (ou não queriam?) fazer contatos. Foram identificadas duzentas e oitenta e três pessoas que viviam em completo estado de abandono, esquecidos pela instituição e que perambulavam sem identidade e sem qualquer objetivo pessoal. Eram como zumbis, já não sabiam falar o próprio nome, nem lembravam dos familiares ou de endereços; eram mortos-vivos esquecidos de si mesmos e de todos. Eram conhecidos como “pacientes crônicos”, “terminais” ou “irrecuperáveis”, isto é, o lixo humano da instituição. Como não participavam de atividades e também não recebiam qualquer tipo de tratamento, foram ironicamente chamados pelos residentes de “grupo da abandonoterapia”.

Os residentes eram proibidos de fazer prescrições por conta própria e de alterar o rumo dos tratamentos médicos instituídos. Ficava difícil, portanto, mudar a situação existente. Começaram, junto com alguns médicos e funcionários, a projetar uma nova organização para o hospital. Era necessário ter muita habilidade porque já sabiam que, mudar e melhorar o atendimento iria mexer com muitos interesses, expor vários erros, apontar omissões e distribuir melhor as responsabilidades.

Pacientes particulares podiam receber visitas diárias e até em fins-de-semana. Os mantidos pela previdência eram atendidos semanal ou mensalmente em entrevistas-relâmpago. Outros podiam ficar meses sem qualquer atendimento. A atuação de alguns médicos chegava a ser absurda e, algumas vezes, até cômica. Havia médicos que prescreviam eletrochoques, outros davam passes magnéticos em seus pacientes e outros médicos os esqueciam durante meses. Certa vez os residentes foram informados pelo enfermeiro de plantão que um profissional costumava reunir quinze pacientes e, numa cena que mais parecia um programa de auditório de televisão, contava piadas e prescrevia em grupo, ou seja, todos os integrantes do grupo recebiam o mesmo padrão de tratamento medicamentoso. A prescrição era escrita em um prontuário e recopiada para os demais.

A proposição de mudanças encabeçada pelo grupo progressista iniciou um estado de guerra na instituição. De um lado ficavam os defensores da estagnação e do outro os adeptos da mudança e reorganização. O diretor do hospital, homem liberal e cauteloso, ocupou uma posição moderadora entre as partes.

Certa vez um dos médicos da ala conservadora, criticando um trabalho de pesquisa iniciado por dois residentes e orientado por outro médico progressista, assim se pronunciou na reunião semanal: “Não acredito que estudantes de medicina estejam preparados para desenvolver um trabalho científico. Há muitos que, com um QI de imbecil, conseguem passar no exame vestibular”. Retrucou uma médica da ala progressista, completando a fala: “... e se formar, doutor!”. Era assim naqueles tempos: batalhas verbais, boicotes, críticas pesadas e ameaças.

O tempo foi conseguindo mostrar que o hospital servia mais para manter os interesses dos poderosos e prepotentes adeptos da ala conservadora do que para atender bem aos internos e oferecer treinamento de qualidade para os residentes. Manter a situação estagnada servia aos propósitos e privilégios adquiridos até então pelos controladores da mente e da “doença mental”; mudar e organizar significava o fim do parasitismo institucional e a perda do poder e dos privilégios de alguns. O “doente mental” servia como matéria prima para a manutenção do caos. Foi possível compreender que a expressão “saber científico” não possui qualquer valor real; que ela pode servir aos detentores do saber segundo suas próprias intenções, sobretudo quando dignidade e cidadania são substituídas pela ganância e voracidade dos que controlam o poder do conhecimento.

A medida em que o hospital ia ficando cada vez menos doente, os pacientes melhoravam. Já não ficavam tão presos e mendigos porque eram estimulados a sair e reivindicar seus direitos. Participavam de festas, jogos, passeios e pequenas viagens e excursões. O estímulo às suas famílias aumentava o número de visitas e provocava a diminuição das doses de remédios e da freqüência dos eletrochoques. Os conservadores se irritavam e alguns pacientes já conseguiam sorrir. Havia um certo temor de irritar demasiadamente os conservadores para evitar que os sorrisos se transformassem em gargalhadas de deboche. Era necessário atenuar os atritos e mantê-los em nível suportável, o importante era que o clima de livre expressividade continuasse crescendo e sufocasse o autoritarismo da instituição. Esse clima era muito bem-vindo e desejado por internados e residentes.

Na verdade o clima existente em um hospital psiquiátrico não difere muito de outras instituições como família, escola e empresa. A liberdade quando se torna expressiva, solidária e responsável acaba se tornando construtiva e alegre.
















CAPÍTULO II
Os loucos e o governador

Certa vez houve uma festa junina no hospital. Nesse dia tinha um pouco de tudo: fogueira, quadrilha, quebra-potes, pau-de-sebo e outras brincadeiras. Havia nos fundos do hospital uma grande área onde se podia jogar “pelada”, voleibol e que também era usada para outra atividades. Por toda parte se via bandeirolas coloridas e no centro do imenso quintal a fogueira já estava acesa.

O diretor do hospital, figura de grande influência política, havia convidado algumas autoridades para a inauguração das reformas feitas recentemente nessa área de lazer e para participarem da festa que marcava essa obra. O convidado central era o governador do Estado, que vinha sempre acompanhado de numerosa comitiva. Dois internos, um branco e um negro adoravam ficar próximo às autoridades nas inaugurações e festas que ocorriam no hospital. Já era um fato comum e repetido em outras ocasiões.

No dia dos preparativos para a festa o hospital mais parecia um formigueiro. Enquanto uns levavam cadeiras e mesas, outros colavam bandeirolas ou estavam varrendo o chão, carregando lenha e ajudando na cozinha. No final da tarde a festa começou. Os internos dançavam pela música de um velho sistema de som instalado às pressas. Mais tarde alguém pede a palavra e anuncia a chegada do governador e sua comitiva. Todos pararam de dançar e ficaram assistindo aos longos discursos feitos pelas autoridades. Após o discurso do governador elogiando o hospital, seguiram-se as palavras de agradecimento do diretor. Foram servidas as comidas e bebidas.

O paciente negro, junto ao governador, observava com atenção olhando-o de cima a baixo enquanto ele saboreava as deliciosas comidas e bebidas. Quando ele, satisfeito, se despedia para sair o paciente negro o interrompeu e falou: “Doutor, agora que o senhor já comeu bem, está na hora de ajudar a gente a levar de volta para o refeitório as mesas e as cadeiras”. O paciente branco, visivelmente embaraçado e cumprimentando o governador, falou: “Não se preocupe excelência, o nosso amigo aqui é um paciente em recuperação. Ele é gente boa. Estava só brincando”. O governador, um pouco constrangido, disfarçou com um sorriso eleitoral, cumprimentou ambos os internos e foi saindo. Atrás dele foram as autoridades, o diretor, sua comitiva e os adeptos da ala conservadora. Agora já era possível o representante do governo estadual conversar e apertar a mão dos “loucos”.

A professora de mitologia

Na ala feminina havia uma paciente que era professora universitária e especialista em História da Civilização Grega. Era bem branca, alta e magra, seu rosto apresentava traços finos, elegantes, denotava um ar aristocrata. Seu porte altivo e ereto e sua fisionomia séria e imponente impunham muito respeito. Seu timbre de voz era agudo e estridente. Falava sem parar.

Certa manhã abordou o residente no corredor reclamando que seu médico a estava obrigando a tomar muitos tranqüilizantes. O residente conversou com seu médico e ele concordou em transferir para ele a continuidade do seu tratamento. O residente retirou uma parte dos remédios e aumentou o número de entrevistas.

Certo dia ela perguntou ao residente o que ele sabia a respeito de mitologia grega. Ele respondeu: “Quase nada”. Ela o censurou e perguntou em qual ano da faculdade ele estava. Falou que estava no quinto ano. Ela, ironicamente, perguntou como ele poderia ser médico dela se ainda não havia concluído o curso e ela já havia até lecionado em sua universidade. O residente falou que estava treinando para cuidar de pessoas e que gostava muito desse trabalho.

Brigou com ele durante muito tempo e, após certo período, passou a tratá-lo como filho e como aluno. Essas entrevistas se transformaram em aulas de mitologia grega e ele se tornou um ouvinte atento e aprendeu muita coisa que não sabia sobre a Grécia Antiga. Nos intervalos das aulas falava sobre sua vida. Era solteira, tinha cinqüenta e oito anos, morava só num apartamento modesto e estava aposentada. Sentia-se muito solitária. Nunca dera sorte no amor, pois, segundo dizia, os homens a temiam e não conseguiam se aproximar.

No dia da sua alta pediu desculpas por ter sido ríspida com ele em algumas entrevistas, abriu sua bolsa e ofereceu um velho livro sobre a História da Civilização Grega. O residente sorriu e a abraçou em agradecimento. Ela despediu-se e saiu do hospital acenando com a mão e com a bolsa pendurada no ombro.




Ruídos na noite

O residente acordou atordoado. Teve a impressão de ter ouvido uma sirene de ambulância. Pensou ter sonhado e, sonolento, conferiu as horas: eram três horas da manhã. Voltou a deitar e, logo em seguida, ouviu fortes murros na porta do quarto. Rapidamente correu e abriu a porta, ele era o plantonista naquela noite. Viu o rosto tenso do funcionário da portaria que gaguejando falou: “Tem ocorrência aí fora e o homem está violento”. O residente vestiu apressadamente as calças e o jaleco branco, enfiou os pés nos sapatos e lançou um olhar preguiçoso sobre as camas. Todos os outros residentes dormiam e roncavam tranqüilamente. Enquanto se preparava ouvia vozes que ecoavam altas e, em seguida, um ruído de vidros se partindo.

Chegou na portaria e deparou com a cena que ainda se desenrolava. O chão estava coberto de cacos de vidro. Duas viaturas da polícia militar estavam paradas na rua. Oito policiais militares, com cordas nas mãos, se protegiam por detrás do enorme portão de entrada do hospital. Um sargento com dois metros de altura, com as mãos sangrando, ainda quebrava os restos de vidros da estante da portaria. Ele estava enfurecido e com cheiro de bebida; insultava os policiais que o observavam através do portão de ferro, pelo lado de fora. O porteiro do hospital, acuado num canto, pedia calma enquanto olhava os pedaços de vidro espalhados pelo chão.

O sargento enfurecido viu o residente chegar e partiu ameaçador em sua direção. O residente sentiu as pernas irem ficando duras enquanto o coração parecia disparar e bater na garganta. Teve a impressão de que um pesado trator iria lhe esmagar sem que pudesse mover-se. O sargento-gigante abotoou-o pelo jaleco e quase o tira do chão. Em seguida falou:
- É você que é o Doutor?
O residente balbuciou:
- Sim...
O sargento falou:
- Já tomei dez cachaças só para poder dar um bafo na cara de um doutor. E deu o bafo.
O sangue voltou a circular no corpo do residente e ele, tentando manter-se calmo, falou:
- Se você soltar o meu jaleco, acho que podemos conversar.
O residente usava toda a sua coragem para aparentar calma e serenidade naquele momento. O sargento olhou ao redor e aos poucos foi soltando sua roupa. Para acalmá-lo e para evitar que suas próprias pernas tremessem o residente convidou-o a sentar-se num banco que estava próximo. As forças do residente estavam voltando e ele perguntou o que estava acontecendo. O sargento falava alto, gesticulava e ia respingando sangue e saliva. Olhava para os colegas e os insultava com palavrões, maldizia sua corporação, criticava o hospital, sua própria família e ameaçava o porteiro. Estava muito agitado. Fazia quatro noites que não dormia e bebia muito para se acalmar.

De vez em quando interrompia o relato para chamar os colegas de covardes, traidores e outras expressões impublicáveis. O residente ficou ouvindo durante quase uma hora as suas queixas e indignações. Falou:

- Não vou ficar internado. Se tentarem isso eu quebro esse hospital. Só quero dormir um pouco e tirar essa confusão da minha cabeça.

O residente respondeu que não seria obrigado a ficar. Poderia cuidar dos ferimentos e logo em seguida, se quisesse, sairia. Mas se quisesse dormir um pouco tínhamos remédio para isso e para a “confusão na cabeça”. Resistiu muito, mas, finalmente, fez um acordo: cuidaria dos ferimentos, dormiria aquela noite no hospital e quando acordasse voltaria a conversar e fazer novo acordo. Ele aceitou, mas na hora de tomar a injeção de sedativo ameaçou o enfermeiro:
- Se doer, eu vou quebrar a cara dele – falou olhando com a cara feia para o enfermeiro.
O residente não concordou com a ameaça e mandou suspender a injeção. Falou que ele estava recusando nossa ajuda e que a alternativa que restava seria a de mandá-lo de volta para o quartel. Ele logo reagiu e concordou que precisava dormir porque estava muito cansado. Foi feito o sedativo e, após alguns segundos, a montanha começou a desmoronar. Suas pálpebras foram ficando pesadas, suas palavras se desarticulavam e aquele corpo de mais de cem quilos se dobrou de lado e foi deitando no banco. Caiu em profundo sono e seus colegas de farda ajudaram o enfermeiro a colocá-lo na maca. Foi levado para o interior do hospital. O residente voltou para sua cama aliviado, mas não conseguia dormir; seu corpo ainda tremia e o ruído do despertador anunciava que um novo dia estava começando.






O sanfoneiro

Entrou no consultório o último paciente que iria se atendido naquele tarde de sexta-feira. Era um homem baixo, atarracado, com a cabeça globosa e ar simpático. Seu rosto era expressivo, falava em voz baixa com ritmo pausado, quase suplicante.

O cansaço era visível no rosto do residente, depois de uma semana cheia e movimentada. Ele já se via caminhando para o quarto, tomando um bom banho e jantando. Depois decidiria se iria a um cinema ou a qualquer outro lugar.

Com jeito humilde e embaraçado o homem falou: “Doutor, eu não quero tomar muito o seu tempo; queria só uma explicação e uma ajuda”. Olhando sempre para suas mãos, informou que tocava sanfona e queria se aperfeiçoar mais. Tinha a impressão que as peles que uniam a base dos seus dedos dificultavam o movimento de cada dedo isoladamente. Explicou que quando mexia um dedo o do lado também se mexia. Isso, segundo ele, atrapalhava a autonomia de cada dedo e poderia ser o fator responsável pelos seus erros quando estava tocando o instrumento. Queria também aprender datilografia e esse “problema” poderia incomodá-lo. Perguntou se aquelas peles eram mesmo necessárias e se era possível fazer uma cirurgia para corta-las um pouco. Talvez, assim, pudesse ficar com os dedos mais livres, mais ágeis, diminuindo seus erros.

Os olhos e ouvidos do residente estavam centrados na estória do sanfoneiro. Estava perplexo, pois nunca havia se deparado com um “problema” daquele tipo. Enquanto o sanfoneiro falava o residente, num turbilhão de idéias, pensava nas possibilidades de solução para o caso. Ao encerrar sua estória suplicou para que o residente fizesse a cirurgia de que tanto necessitava. Ao se despedir o residente prometeu que iria ouvir a opinião de um colega que fazia estágio em cirurgia geral. Assim que tivesse uma resposta o informaria sobre o que fazer nesse caso.

Por coincidência o residente encontrou-se com o colega estagiário no dia seguinte e contou o caso do sanfoneiro. Depois de rir muito o estagiário ficou pensativo e falou: “Sabe que eu nunca tinha pensado nisso. Não sei realmente qual seria o efeito desse tipo de cirurgia”.

O residente decidiu arbitrariamente que a cirurgia não deveria ser tentada e comunicou essa decisão ao sanfoneiro. Argumentou dizendo que tudo o que a natureza faz tem algum sentido e função. O sanfoneiro baixou a cabeça e ficou em silêncio, parecendo ter se conformado com a explicação. O residente, porém, ficou em dúvida se agiu de modo acertado, mas com a convicção de não iria ser ele o autor da estranha cirurgia.

O candidato
Iria abrir uma vaga para estudante residente no hospital. Um dos residentes que cursava o sexto ano iria sair em Dezembro. Alguns alunos do quarto e do quinto ano da faculdade freqüentavam o hospital para tentar conseguir a tão disputada vaga. Havia os que, após entrarem em contato com os pacientes, jamais voltavam; outros resistiam heroicamente ao medo e, ainda que temerosos, procuravam se adaptar. Meses antes que essa vaga se consolidasse eles se tornavam assíduos freqüentadores da nossa república. Perguntavam, nos acompanhavam e trocavam idéias sobre os diferentes trabalhos realizados no hospital. O estudante que conseguisse a vaga receberia, além de uma bolsa equivalente a um salário mínimo, alimentação gratuita fornecida pelo hospital e um certo prestígio junto aos outros alunos da faculdade.

Os residentes veteranos possuíam uma relativa experiência, uma espécie de “olho clínico” para perceber o perfil psicológico dos candidatos à vaga. Além de paciência, “sangue frio” e disposição para um trabalho duro, era preciso ter uma razoável estrutura pessoal para conviver durante alguns anos num hospício.

Um dos candidatos era o Tarcísio, jovem de raciocínio lento, muito meticuloso e excessivamente organizado. Não gostava de abraçar os pacientes e evitava os contatos que pudessem macular a brancura das suas roupas. Mas era persistente e não desistia facilmente de lutar pela vaga. Não era muito admirado pelos residentes e pela maioria dos funcionários; sempre perguntava se a comida era de boa qualidade e se o pagamento saia direitinho no final do mês.

Certa tarde os residentes reunidos resolveram submeter o Tarcísio a uma bateria de testes que pudesse comprovar sua boa vontade e interesse pelo trabalho, uma espécie de “prova de fogo” que conseguisse checar seu preparo para trabalhar naquele hospital, separando a vocação pela vaga da vocação pelo trabalho. Esses testes teriam que ser mantidos em segredo pelos residentes até seu término. Era justo que tivesse que enfrentar os testes, pois, pelo que se podia perceber, ele não conseguiria suportar seis meses de permanência naquele lugar, ocupando a vaga desnecessariamente. As experiências diárias com os pacientes eram difíceis e inusitadas.

Certa vez um dos residentes voltara para o quarto rindo muito e, ao mesmo tempo, se lamentando. Um paciente que estava sendo entrevistado havia arrancado bruscamente os seus óculos e os partira ao meio, ficando com a outra metade. O paciente argumentara que repartir os óculos em dois pedaços e ficar com um deles para si, lhe parecia mais justo do que deixar o residente ser proprietário de ambos os lados. Lançar objetos, gritar com o entrevistador, agarrar-se ou rasgar as roupas do interlocutor e fazer reclamações intermináveis, eram situações de rotina naquele lugar.

O Tarcísio precisava engraxar seus sapatos brancos. Fora informado de que havia um paciente experiente nesse ofício. Os sapatos foram levados para a ala masculina e voltaram muito bem engraxados, mas sem o couro dos bicos. Quem os calçasse ficaria com os dedos à mostra. O Tarcísio ficou irritado com o prejuízo, mas o residente que os trouxe falou que o paciente decidiu que assim ficaria melhor, pois fazia muito calor naqueles dias.

Outras brincadeiras foram feitas com o Tarcísio. Colocar bolas de manteiga no bico dos sapatos, cortar todos os botões da roupa ou esconder objetos de uso pessoal, eram formas de testar sua paciência e esportividade. Mas ele resistia e continuava freqüentando a república e o hospital. Mas chegou o dia em que um dos residentes teve uma idéia genial, um verdadeiro teste-limite para o candidato. Esse seria o último a ser feito para completar a bateria.

Havia um senhor já velho - o Habib - paciente antigo no hospital. Morava no mesmo quarto coletivo junto com os residentes. Ajudava nos serviços domésticos: arrumava as camas, recolhia a roupa suja, esquentava a comida, servia as refeições e varria o quarto. Era libanês e veio tentar sua vida no Brasil no tempo em que ainda era bem novo. Muito prestativo e educado já vira passar muitos outros estudantes que viveram parte de suas vidas naquele quarto. Ganhava meio salário mínimo pago pelo hospital, merecia uma atenção especial e recebia presentes dos estudantes e funcionários. De vez em quando entrava em crises delirantes onde relembrava os velhos tempos em que era comerciante de peles e de outros produtos. Foi comerciante ambulante, dono de “regatão1” e havia viajado por grande extensão da Amazônia brasileira e em algumas localidades da Bolívia, do Peru e da Colômbia.

O Habib foi chamado para uma reunião secreta e lhe foram explicados todos os detalhes do novo plano. Ele sorria e concordava balançando a cabeça num gesto afirmativo. Era um veterano e já tinha sido protagonista de muitas encenações e brincadeiras com diferentes gerações de estudantes.

O Tarcísio guardava um certo temor do velho Habib, sobretudo quando este começava a delirar. Fora inventada uma estória sobre suas crises. Dizia-se que, nesses momentos, ele se tornava agressivo, perigoso. Havia, em algumas ocasiões, empunhado garfos e facas para atingir quem estivesse próximo. Era um homicida impulsivo que já havia feito três vítimas, por motivos fúteis, quando ainda exercia sua atividade de comerciante. Não deveria ser perturbado de forma alguma quando demonstrasse comportamento delirante ou esquisito, situações em que poderia alterar seu humor e transformar-se num terrível predador. Essa estória era contada para os estudantes visitantes que não mereciam a simpatia dos residentes.

O Tarcísio foi convidado para almoçar no domingo com os residentes. Nesse dia todos vestiram suas roupas mais velhas e usavam sandálias de borracha. Quando o Tarcísio chegou, cabelos bem penteados e de roupa nova, estavam todos conversando animadamente, sentados ou deitados sobre as camas. Após certo tempo o Habib interrompeu a conversa e, educadamente, convidou a todos para sentarem-se à mesa. A comida era muita e estava com uma aparência convidativa. Todos já haviam se servido quando o velho Habib, de repente, começou a fazer um discurso para o fogão, como se o fogão fosse uma pessoa. Insultava o fogão e, subitamente, entoava canções de amor para ele. Falava e cantava, ora em português, ora em árabe e também em espanhol. O Tarcísio, de olhos arregalados, estava perplexo assistindo aquele ritual estranho. Os residentes estavam quietos e olhavam apenas para seus pratos cheios de comida. Alguém sussurrou para o Tarcísio: “Olha para o teu prato e fica quieto. Ele está delirando”. Ele obedeceu e ficamos assistindo a representação magistral do Habib.

Encerrado o ritual com o fogão, o velho ator se aproximou da mesa dando gargalhadas e falando palavras desconexas. Pegou uma grande concha e começou a distribuir a comida que estava nas travessas por sobre as cabeças de cada um dos participantes do almoço. Colocava macarrão, arroz, salada e feijão por dentro das camisas e por sobre os braços e pernas dos convidados e às vezes provava com a língua e estalando-a comentava: “O tempero está no ponto!” Cantava e discursava enquanto ia lambuzando todos. Os residentes começaram a imitar o Habib e logo estavam depositando comida na cabeça e nas roupas dos vizinhos mais próximos. Rindo e cantando junto com o Habib o grupo formava um coro e manifestava uma grande alegria em participar daquele estranho festival de comidas. O Tarcísio, assustadíssimo, foi sendo obrigado a submeter-se aos procedimentos. Entre sorrisos amarelos e sem compreender o que estava acontecendo, participou a contragosto daquela orgia alimentar.

Quando a comida acabou o Habib, ainda cantando, foi apanhar toalhas de banho para todos e organizou uma fila em frente ao banheiro. Após o banho todos ajudaram na faxina para limpar a sujeira espalhada por sobre a mesa, pelo chão e pelas paredes do refeitório. Foram emprestadas roupas limpas para o Tarcísio voltar para casa. Essa foi a última vez que o vimos no hospital. Perdemos, assim, o nosso candidato.

regatão1 - tipo de comércio ambulante. Aquele que compra em grosso para vender a retalho. Vendedor que percorre os rios de barco, parando de lugar em lugar: "Os regatões são os traficantes que levam em canoas, por todos os rios, lagoas, furos e lugares, mercadorias estrangeiras ou nacionais, e as vendem a dinheiro, ou as permutam pelos produtos do país". (Aurélio).




CAPÍTULO III

O homem dos sacos

Havia um paciente no hospital que andava sempre com um saco. Dentro do saco muitos objetos poderiam ser encontrados: pedras, pedaços de madeira, folhas secas, pequenas caixas vazias, etc. Tratava esses objetos como se fossem peças muito valiosas. Seu discurso era o de um magnata, falava que possuía muitas terras e gado, minas de ouro e de pedras preciosas, prédios e navios, aviões e lanchas. Era um homem podre de rico. Vivia solicitando licenças para sair do hospital e cuidar dos seus negócios lá fora. Pedia para todos que o ajudassem a fazer petições, requerimentos e cartas para a direção do hospital, pois estava tendo muitos prejuízos. Seus funcionários o estavam roubando e dilapidando seus bens na sua ausência.

Ficava horas contando os seus papéis velhos e gravetos e os escondia rapidamente quando alguém se aproximava. Prometia grandes somas em dinheiro para os enfermeiros se eles conseguissem a sua “libertação”. Queria, porém, um documento com assinatura do diretor e de todos os médicos do hospital para que pudesse legalizar lá fora a sua vida e seus bens.

Certa vez fugiu do hospital aproveitando-se da distração dos funcionários num dia de festa. Estavam todos no grande quintal que ficava atrás dos prédios, quando ele pulou o muro com o saco nas costas. Ficou oito dias na rua. Regressou no nono dia contando várias estórias. Ao invés de um saco, já possuía dois. O maior, que conseguira na rua, estava cheio de objetos catados pelas esquinas. Disse que não poderia misturar o conteúdo dos sacos porque esses conteúdos pertenciam a dois mundos diferentes: o da rua e o do hospital. Se o fizesse - dizia - poderia desorganizar sua cabeça, que já sabia de cor o que havia e quanto havia dentro de cada um.

Ele era um paciente solitário, gostava apenas da companhia dos seus sacos. Não participava de atividades grupais e estava sempre muito desconfiado. Para melhorar nosso contato com ele passamos a presenteá-lo com vários objetos sem importância como: caixas de fósforos e de chicletes vazias, pedaços de papel de chocolate, prospectos de remédios com figuras coloridas, etc. Ele os recebia para depois selecioná-los. Guardava no saco os que eram aprovados por ele e jogava fora os restantes. Um dia perguntamos a ele por que selecionava os objetos. Respondeu: - “Para separar o joio do trigo”. Explicou que as pessoas e os objetos são divididos em “bons” e “maus”; os bons devem ser guardados e os maus jogados fora.

Ele era um dos pacientes que nunca recebia visitas dos familiares. Era solteiro. Perguntamos sobre sua família. Ficou calado e abriu o saco grande, tirou de lá vários papéis e pôs-se a contá-los na nossa frente. Perguntamos por que resolveu contar os papéis na nossa frente, já que não gostava de fazer isso na frente das pessoas: - “Você é muito curioso, mas é uma pessoa boa” - respondeu. Despediu-se em seguida e saiu pela porta do consultório carregando os dois sacos. Passamos alguns meses conversando com ele sem tocar no assunto relativo à sua família. Já éramos amigos e tínhamos até permissão de retirar alguns objetos de ambos os sacos, um de cada vez, para examiná-los com as nossas próprias mãos. Fizemos vários requerimentos solicitando a sua “libertação” do hospital. Nenhum resultado concreto.

Em uma das nossas conversas tivemos a feliz idéia de associar sua “libertação” à sua família. Falamos que só se sentiria livre para sair do hospital quando o hospital deixasse de significar para ele uma família. Teria que tentar uma reaproximação com a sua verdadeira família para poder livrar-se do hospital.

Passou três semanas sem nos procurar, mas, um belo dia, pediu para termos “uma conversa em particular”. Não queria entrar no consultório para conversarmos porque acreditava que “até as paredes têm ouvidos”. Fomos conversar debaixo de uma mangueira velha que havia no fundo do quintal do hospital. Puxamos dois tijolos e sentamos. Confortavelmente instalados nos tijolos iniciamos a nossa conversa. Com os sacos perto de si, começou a falar sobre sua família.

Morava no interior e sua família possuía uma fazenda com plantações e gado. Possuíam um barco com motor a óleo diesel e um pequeno estabelecimento comercial. Eram oito irmãos e havia muitas brigas quando se tratava de repartir os lucros ou administrar as atividades. Tinha vindo estudar na capital aos doze anos de idade e aos quatorze começou a sentir uma certa confusão na cabeça. Parou de estudar e de receber ajuda dos familiares. Morava com uma tia na capital e esta, sem receber apoio financeiro da sua família, resolveu interná-lo no hospital. Atualmente tinha quarenta e oito anos de idade. Sua primeira internação se dera quando ainda tinha vinte anos.

Percebíamos pela primeira vez que ele estava lúcido e falava a verdade. Naquela conversa o seu delírio de grandeza aparecia apenas poucas vezes; logo em seguida retomava o fio da realidade e continuava falando de forma coerente e compreensível. Durante todo o tempo não olhou uma só vez para os sacos. Terminada a conversa levantamos dos tijolos e fomos andando vagarosamente em direção ao prédio do hospital. Havíamos andado poucos metros quando ele, de repente, se voltou e saiu correndo para buscar os sacos que havia esquecido perto dos tijolos. Era a primeira vez que havia ficado tão longe dos sacos.

Nos dirigimos diretamente para a sala de arquivos do hospital. Examinamos e checamos seus prontuários velhos e o atual. Foi possível fazer a reconstituição da sua vida hospitalar e familiar naquela confusão de informações escritas nos papéis. O que nos falara estava escrito nos prontuários e a sua estória começou a ganhar um sentido diferente e real. Naquela tarde, na reunião de acompanhamento de casos, falamos sobre as descobertas que haviam sido feitas. Residentes, assistentes sociais, enfermeiros e terapeutas ocupacionais foram mobilizados para ativar o contato com familiares, estimular contatos grupais, projetar um plano de trabalho para a sua futura saída do hospital. O homem dos sacos agora já não estava só com seus sacos, possuía uma retaguarda disposta a entender o seu dilema com eles. Na verdade eram muitos esses dilemas.

Era conhecido como Papai Noel. Já havia brigado muito com outros pacientes por causa desse apelido. Agredia todos os que ousassem aproximar-se para abrir seus sacos.

A primeira providência tomada pela equipe foi a de resgatar o seu verdadeiro nome. Chamava-se José. Agora todos passariam a chamá-lo pelo seu nome. As assistentes sociais descobriram o endereço da sua tia e de mais três irmãos que residiam na capital.

As reuniões com os familiares tinham o objetivo de restabelecer os contatos e mostrar que, com a ajuda deles, José poderia recuperar a sua posição normal de membro da família. As resistências foram muitas e intensas, mas as esperanças continuavam.

Nessa época compreendemos como era falso o mito da loucura e do “louco varrido”. O psiquismo humano, analogamente ao sistema imunológico do organismo, possui poderosas defesas para preservar o equilíbrio mental. O comportamento “anormal” mantém preservada sua coerência e seu lado saudável para poder suportar os desequilíbrios da família e da sociedade.

Explicando os códigos:

O enigma de José estava contido simbolicamente na sua relação com seus sacos. O saco pequeno, que guardava objetos adquiridos dentro do hospital, representava seus núcleos afetivos hospitalares (grupo afetivo hospitalar) onde passara grande parte da sua vida. Era pequeno porque não lhe interessava muito que crescesse. O saco grande representava seus núcleos afetivos sociofamiliares (família e sociedade) para onde desejava retornar. Era a sua “libertação”, tantas vezes solicitada por requerimentos e cartas.

Seu delírio de riqueza, representado pelo ouro, dinheiro e propriedades, simbolizava o seu abandono pela família, que o deixava mendigo desse afeto tão importante e valioso e que era recolhido pelo chão em forma de objetos, convencionalmente de pouco valor. Denunciava, ao mesmo tempo, a ambição materialista existente em suas família e na sociedade que conhecia. Como não possuía (naquela época só tinha o saco hospitalar) uma forma concreta e palpável de realizar seu desejo, fugiu do hospital para adquiri-lo e o fez maior, depositando-o num saco bem grande. Sua fuga não foi uma indisciplina, mas, tão somente, o resgate material do seu sonho: uma grande vontade de reaproximação sócio-familiar, isto é, um desejo de reintegrar-se à vida real.

Contar e recontar os objetos de cada saco, era manter-se em contato permanente com os dois núcleos afetivos que possuía. Mantê-los sob severa vigilância significava evitar mais um grande roubo afetivo na história da sua vida. Mantê-los separados serviria para distinguir duas histórias completamente diferentes e opostas entre si. Misturar o conteúdo dos sacos seria misturar seus conteúdos diferentes e desorganizar sua cabeça, a sua vida afetiva. Ninguém poderia intrometer-se para não desordenar o que havia conseguido ordenar com tanto trabalho e durante tanto tempo.

Só quem conseguisse, como ele, perceber essas diferenças poderia aproximar-se dos sacos. Naqueles sacos estavam guardadas as únicas coisas de valor que possuía na vida. Os objetos que não serviam mais para os outros, representavam restos de afeto que ele cuidadosamente coletava e selecionava para depois juntar seus pedaços e incorporá-los, enriquecendo o seu mundo pobre de afeto. Selecionar seria o mesmo que separar as boas das más experiências afetivas pelas quais havia passado.

José havia ensacado a sua vida afetiva durante muitos anos para não se sentir só e para preservar sua identidade, sua memória e suas emoções. Conhecia o conteúdo de cada um dos sacos como a palma de sua mão e os mantinha separados para não perder a sua sanidade mental. Evitava os grupos porque o seu grupo original (sua família) o tinha expulsado precocemente do seu convívio e o havia esquecido. Seu grupo confiável eram os sacos, resumo valioso e silencioso de toda a sua história. Como confiar em grupos, se os grupos o rejeitavam e o consideravam como um estranho, um louco?

Nossa relação de amizade estreitava-se cada vez mais e nossas conversas já eram mais longas e profundas. Já eram, quase todas, feitas dentro do consultório. Fomos apresentando gradativamente os membros da equipe para o José. Após certo tempo já não conversávamos mais sozinhos, havia um grupo que conversava, do qual José era membro participante. No princípio falava pouco, mas com o tempo foi tomando a palavra e se incorporando ao trabalho da equipe. José estava experimentando as vantagens de participar do seu primeiro grupo confiável. Denominamos esse grupo de “Grupo Trabalho e Esperança”.

Certa vez ele nos confidenciou que achava que dessa vez iria conseguir sua “‘libertação”. Aquelas pessoas - segundo ele - não estavam mentindo, pois já conseguira algumas visitas dos irmãos, que lhe trouxeram presentes e dinheiro. Suas roupas já não eram tão sujas como antigamente e os banhos não tão insuportáveis assim. Mas os sacos continuavam perto dele.

Nós compreendíamos cada vez mais a solidão de José e, ao mesmo tempo, o nosso despreparo para lidar com casos semelhantes ao dele. Achamos mesmo que as pessoas olham para os “loucos” da mesma forma como olham para as crianças e adolescentes: como se fossem sacos grandes ou pequenos, completamente vazios, ou melhor, cheios de coisas sem valor por conterem dentro de si quinquilharias que necessitam ser selecionadas pelos conselhos e normas “educativas” dos adultos. Que precisam de muita proteção por não possuírem conteúdo e objetivos próprios. Sentem-se donas desses sacos e os carregam de um lado para o outro, segundo seus próprios sonhos e desejos, sem se importarem com os seus próprios conteúdos de valor. Seriam como os sacos de José: simples objetos, cuja função seria a de proteger seu dono com suas presenças. Protegê-lo de sua insegurança e solidão.

José começou a participar de outros grupos de pacientes e ganhava mais confiança em si mesmo. Fazia anos que não tomava remédios no hospital. Era um esquecido hospitalar desde o tempo em que era conhecido como Papai Noel. A partir das nossas primeiras conversas, a equipe havia resolvido que ele não tomaria remédios como parte do seu tratamento. Nunca lhe foi oferecido nem nunca pediu. Continuou sempre assim: sem remédios. Era um antigo membro do grupo da abandonoterapia (apelido que dávamos aos esquecidos), que agora já possuía identidade e se chamava José ; membro com voz e voto dentro do grupo “Trabalho e Esperança”, escolhido e eleito pela equipe do hospital para ser o cidadão de sua própria libertação.

José pediu-nos que guardássemos os seus sacos na sala de reuniões, onde havia um velho armário cheio de desenhos e objetos confeccionados por pacientes da terapia ocupacional. Perguntou se era um lugar seguro e quem guardava as chaves desse armário. Falamos que era seguro e que as chaves ficavam com o nosso grupo. Perguntamos se ele queria ter uma chave só para ele. Aceitou, e a nova chave foi confeccionada e lhe foi entregue. Andava com ela pendurada no pescoço e dormia com ela. Não tinha mais o trabalho de carregar os dois sacos porque os havia trocado provisoriamente por uma chave, símbolo da sua confiança em nosso grupo.

Com o passar do tempo parou de coletar objetos do chão e entrou para um grupo do Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização) que havia sido instalado no hospital para pacientes que queriam aprender a ler e escrever. Seus delírios eram pouco freqüentes e só reapareciam quando retirava seus sacos do armário para tê-los junto a si, e desapareciam quando nos confiava a guarda dos mesmos.
Ensinamos a ele que não revidasse quando alguém, relembrando os velhos tempos, o chamasse de Papai Noel. Para nós e para quase todos ele era o novo cidadão chamado José e deveria ser assim para sempre.

Certo dia seus parentes vieram buscá-lo para que passasse o fim de semana com eles. Concordou em ir e queria levar os sacos, mas o convencemos de que ele, como o novo José, deveria levar apenas a chave do armário. Ele aceitou e foi embora com os parentes. Voltou na segunda feira pela manhã com um terceiro saco. Na verdade não era um saco e sim uma sacola. Estava cheia de objetos diferentes dos outros que estavam no armário. Continha escova, creme dental, roupas, sapato, sandálias, cadernos, biscoitos e um pente novo.

Ele estava alegre, mas conversava pouco com os parentes. Aproveitamos a presença deles e fizemos uma reunião conjunta do grupo “Trabalho e Esperança”.

O grupo ia ficando maior com o passar do tempo e já mostrava alguns resultados. Na reunião, os irmãos queriam que ele saísse do hospital e retornasse para a casa de um deles. O José ficou reticente e acabamos concordando que sua saída teria que ser decidida por ele e que deveria aproveitar e concluir seu curso do Mobral.

Já sabíamos muito a respeito da sua vida familiar. Seus irmãos contaram muitas estórias que não estavam escritas nos prontuários velhos a nem nos novos. Parte de sua família morava na capital e possuía boa situação financeira. O pai de José havia falecido há dez anos, mas sua mãe ainda morava na mesma fazenda com os filhos mais novos.

Numa outra reunião do grupo José pediu que guardássemos sua sacola nova, pois temia que os outros pacientes roubassem seus objetos, fato bastante freqüente entre eles. Queria ficar com alguns objetos de uso pessoal e com a chave do armário. Pediu também que queimássemos os outros dois sacos antigos. Respondemos que os sacos antigos ficariam guardados até um ano após sua saída do hospital. Gostaríamos que ele próprio, após um ano e junto com a sua família, voltasse a nos visitar e junto conosco, procedesse ao ritual de incineração dos velhos sacos. Aceitou a idéia e voltou para a sua aula do Mobral que já havia iniciado há cinco minutos atrás.

O novo José já não era o mesmo homem dos sacos e a nossa equipe já não era a mesma dos velhos tempos. Havíamos aprendido, com ele e com outros pacientes, formas novas de preencher nossos “sacos intelectuais” com conteúdos de muito valor. Nós, José e os outros pacientes estávamos melhorando, mesmo estando todos, internados no mesmo hospício.
Concluído o curso do Mobral ele já escrevia uns bilhetes para os seus familiares. As visitas já eram semanais e as saídas do hospital se prolongavam por uma semana a até por um mês. Estava na hora de José sair.

Na nossa última reunião do grupo “Trabalho e Esperança” fizemos uma brincadeira com José: redigimos uma “Carta de Libertação” concedendo ao Sr. José Oliveira da Silva, os títulos de Cidadão Livre, Membro Honorário da Equipe a de senhor de todos os bens e riquezas que ele conseguisse adquirir dali por diante com o seu próprio esforço. Essa Carta continha também todas as aquisições que fizera desde que passara a se constituir um membro integrante do nosso grupo até aquele dia. Só omitimos na Carta a existência dos dois sacos velhos que ainda jaziam no armário, símbolos de sua loucura, e ao mesmo tempo, da manutenção da sua sanidade. Presenças concretas do seu esforço solitário em manter seu próprio equilíbrio, sem a ajuda de ninguém, durante muitos anos.

José saiu do hospital numa sexta-feira de tarde acompanhado por sua sacola nova, pelos parentes, pelos membros do Grupo Trabalho e Esperança e por alguns pacientes que haviam se tornado seus amigos nos últimos tempos. Sentia-se mais confiante e, na porta de entrada do hospital, se despediu de todos, entrou no carro com seus parentes e desapareceu entre os acenos dos que ficaram.

Lembramos que, quando recebeu sua “Carta de Libertação”, percebeu, com um sorriso, a assinatura de quase todos os médicos do hospital, funcionários e pacientes que o conheciam bem. Mais parecia um abaixo assinado. Já sabia ler e escrever. Apôs seu nome na última linha, dobrou o papel e o colocou no bolso.

O Grupo Trabalho e Esperança já não existia mais e se transformou, naqueles dias, num grande saco vazio com a saída do José.

Ele nunca mais retornou para aquele hospital, não voltou para queimar os sacos. O que foi feito dos sacos velhos nem nós sabemos responder. Talvez, esquecidos como tantas outras quinquilharias do hospital, devem ter recebido o destino do lixo ou queimados sem a nossa presença, numa grande fogueira de São João. O que, aliás, era muito comum acontecer com os papéis velhos.






Greve no ambulatório
Ao lado do hospital funcionava um ambulatório. Era um anexo do hospital, de construção mais recente, que atendia as pessoas carentes do bairro. O atendimento era dirigido para portadores de disritmia cerebral, desde epilepsias mais graves até as disfunções leves do ritmo cerebral.

O coordenador do ambulatório era um médico do hospital que se dizia pertencer à ala progressista, mas se comportava, na maioria das vezes, como os médicos da ala conservadora. Era uma personalidade instável que fluía e refluía de acordo com os humores políticos da direção ou com situações ligadas aos seus próprios interesses pessoais. De porte franzino e gestos aristocráticos, quase não se encontrava presente e deixava o funcionamento diário à mercê dos residentes e dos auxiliares de enfermagem que lá trabalhavam. Só tomava alguma atitude quando, por falta de medicamentos ou por motivo de grande importância, era insistentemente solicitado. Estava sempre ausente e não participava da rotina do ambulatório.

Em certa ocasião o estoque de medicamentos utilizados para controle das disritmias se esgotou. Duas semanas antes havia sido avisado várias vezes para dar solução ao problema. Nenhuma providência foi tomada. A ordem, dada por telefone, era para ser usada medicação tranqüilizante em substituição aos anticonvulsivantes normalmente empregados, para “contornar” o problema até que fosse providenciada nova remessa de medicação específica. Os residentes não concordaram com a decisão e foi marcada uma reunião com todos os funcionários.

A conclusão final da reunião foi a de que a ordem não deveria ser acatada. Além de antiética e desonesta, iria refletir-se negativamente na evolução dos casos que estavam sob controle; seria um completo absurdo aceitá-la. A posição a ser seguida seria, depois de esgotada a medicação existente, interromper os controles. Os pacientes teriam que ser avisados com antecedência sobre a possibilidade da falta de medicação nas semanas seguintes. Todos concordaram que os pacientes não poderiam ser enganados e teriam que ser informados sobre a crise pela qual o ambulatório estava passando, uma completa desorganização. Comunicamos ao médico coordenador nossa posição e não recebemos qualquer resposta sobre o assunto.

Contada a medicação que ainda restava foi fixado um dia para o início da greve. Enquanto havia medicação, pacientes e familiares estavam sendo avisados e as providências para iniciar a greve iam sendo discutidas. No dia fixado nenhum residente compareceu ao ambulatório e em várias paredes podiam ser lidos cartazes que explicavam os motivos da interrupção. Os funcionários do ambulatório aderiram ao movimento, mas ficaram cumprindo seus horários de rotina; ficavam informando as pessoas sobre os motivos do movimento.

O médico coordenador tomou conhecimento do fato e acionou a direção do hospital para conter a greve. Já haviam se passado três dias que o ambulatório não funcionava quando os residentes foram convocados para uma reunião da direção do hospital. Lá estavam frente a frente o diretor, o coordenador e os residentes.

Passava das dezesseis horas quando a reunião iniciou. Vimos o coordenador branquela, baixinho e com a cara fechada, afundado em sua poltrona, em frente à mesa do diretor. Sustentava um ar de superioridade e não se dignou em olhar para os residentes. O diretor pediu que todos sentassem e deu inicio a conversa. O coordenador começou falando à maneira de um respeitável magistrado, com uma visível e afetada serenidade. Os residentes foram metralhados, bombardeados e esquartejados pelo coordenador; suas críticas tinham um objetivo arquitetado, isto é, eliminar os residentes do quadro de funcionários do hospital.

O diretor ouvia atento e balançava a cabeça sinalizando estar concentrado na exposição. Os residentes olhavam para a figura insignificante do coordenador e se esforçavam para conter a irritação. Quase uma hora havia se passado e, finalmente, o coordenador encerrou seu discurso. O diretor virou o rosto, compôs seu pescoço cansado e falou para os residentes: “O que vocês tem a dizer?”

A fala seguinte coube aos residentes que explicaram detalhadamente os motivos da paralisação. Foram com freqüência interrompidos pelos apartes do coordenador. Estavam ali para dizer que eram estudantes e que, nessa condição, queriam aprender direito a profissão de médico. Não estavam no hospital para aprender a enganar pacientes e familiares, leigos na arte médica. Não aceitavam uma aprendizagem onde a ética e o conhecimento científico pudessem estar subordinados às irresponsabilidades e deficiências da administração do ambulatório. Finalizaram afirmando que estavam decididos a sair do ambulatório e do hospital se fossem obrigados a se submeter a erros e anomalias da instituição. Eram estudantes solteiros e não tinham nada a perder. Tentariam outra instituição que lhes pudesse oferecer um estágio de melhor qualidade. Mas se procurados pela mídia, falariam sem constrangimento sobre as ocorrências que originaram a greve.

Em certa altura o coordenador chamou ironicamente os estudantes de “os cinco mosquiteiros da doença mental”. Os residentes responderam dizendo que conheciam bem os “camaleões” do hospital, profissionais que se fantasiavam de progressistas para tirar proveito da reorganização profunda que estava acontecendo na instituição. Usaram todo o seu poder de fogo porque sabiam como seria difícil substituir subitamente cinco residentes com razoável experiência por candidatos novos e inexperientes para lidar com o complexo atendimento do hospital e do ambulatório.
Essa estratégia funcionou. O diretor contemporizou dizendo que os pacientes nada tinham a ver com as nossas diferenças internas e que todos deveriam voltar ao trabalho. O coordenador resolveria a questão dos remédios de forma adequada e os residentes voltariam a atender normalmente. A reunião terminou. Os residentes se retiraram e o coordenador continuou afundado em sua poltrona. Estava irritado e desmoralizado por não ter conseguido atingir seu objetivo.

No dia seguinte, pela manhã, fomos informados que uma grande quantidade de medicação anticonvulsivante havia chegado ao ambulatório. Na parte da tarde o funcionamento se normalizou para atender uma grande multidão que se espremia a espera de atendimento. Era uma sexta-feira. Nesse dia o trabalho dos residentes só terminou ao anoitecer. Funcionários e residentes, após o expediente, foram para um bar da esquina comemorar a vitória da greve. Entre os cascos de cerveja vazios e os restos de tira-gostos jazia a figura franzina e insignificante do coordenador – a personagem mais comentada da festa.

Naquele tempo estávamos aprendendo que as distorções nas instituições podem corromper os fundamentos básicos da cidadania. Que os profissionais, independentemente dos seus títulos e funções de chefia, podem prostituir suas consciências para não perder seus empregos ou para submeter-se a interesses de terceiros e poder garantir seus privilégios.









O trambiqueiro

O residente mais novo possuía uns primos na cidade. Eram primos afastados com os quais mantinha contatos esporádicos. Eram cinco moças e um rapaz com dezenove anos. Chamava-se Paulo. Desde criança era hiperativo, brigava muito e aprontava mil problemas dentro de casa. Seus pais moraram numa cidade grande do interior e haviam mudado há pouco tempo para a capital. Era uma família de classe média e a filha mais velha, Ana, havia completado o curso de advocacia há dois anos. Todos trabalhavam, só os três filhos menores não estavam empregados.

Numa tarde de sábado Ana chegou ao hospital aflita. Veio acompanhada pelo amante, um senhor mais velho, e pediu para conversar em particular. O residente, seu primo, os conduziu para uma sala de entrevistas e ela falou que seu irmão Paulo havia se metido numa grande enrascada. Estava foragido, sob ameaça de morte e sendo procurado pela polícia. A família estava tentando localizá-lo e ela pretendia interná-lo no hospital sob a alegação de que poderia estar sofrendo das faculdades mentais. Perguntou se poderia ser utilizado algum diagnóstico que o protegesse da ação da justiça. Ela não tinha muitas informações a respeito do caso porque só havia falado com ele durante poucos minutos através de um telefone público.

O residente informou que a internação poderia ser feita pelo prazo máximo de noventa dias, em caráter de observação, até que se chegasse a alguma conclusão sobre o seu caso. Seria tratado sem privilégios, como qualquer outro paciente e seguiria as normas do hospital. O residente, pelo fato de ter grau de parentesco com ele, o encaminharia para um colega que acompanharia seu caso supervisionado por um médico assistente. Ela não gostou muito das condições expostas e perguntou se teria de pagar pela internação. Foi informada que pagaria pela tabela hospitalar, pois apenas as pessoas comprovadamente carentes poderiam receber atendimento gratuito. Saiu um pouco desapontada, mas aceitou as condições.

Dois dias depois chegava o Paulo ao hospital. Rapaz de ótima aparência: alto, forte, simpático, de cor branca e conversa envolvente. Mais parecia um alto executivo de multinacional. Bem vestido, falava um português impecável, possuía uma postura educada e discreta. Seu carisma atingia a todos os que conversassem com ele.

O residente que deveria acompanhar seu caso ficou impressionado com sua facilidade de contato. Morava com seu pai no interior e pouco vinha a capital. Informou que o residente, que era seu primo distante, o vira pela ultima vez quando tinha apenas dez anos de idade. Sua irmã falara que ele roubava objetos de casa para vender, fazia empréstimos e não pagava. Vivia de falcatruas. Havia levado muitas surras dos pais para corrigir-se, mas ia piorando cada vez mais. Ultimamente vivia mais fora do que dentro de casa. Andava bem limpo e perfumado, suas roupas eram sempre caras e elegantes; não lhe faltava dinheiro no bolso. Estávamos diante de um caso típico de personalidade psicopática.

Não demorou muito para que o Paulo tentasse se aproximar do residente que era seu primo e dos outros residentes, para lembrar laços de parentesco e fazer amizade. O residente que era seu primo o tratava com cordialidade, mas evitava intimidades. Ele era oito anos mais novo do que o residente e certo dia começou a chamá-lo de “tio”. Foi advertido que o tratasse pelo nome e usasse de bom senso com as pessoas do hospital. Passou a visitar assiduamente os residentes.

Num domingo de tarde Paulo contou suas peripécias diante de todos os que estavam conversando no quarto. Entre os risos da platéia ele se comportava como um ator, contando os casos e aventuras pelas quais havia passado. Havia falsificado alguns cheques e sacado muito dinheiro de um banco. Comprou jornal e leu uma notícia que anunciava a inauguração de uma usina termoelétrica. Essa usina seria inaugurada dentro de uma semana em uma pequena cidade do interior. Fretou um táxi aéreo e se dirigiu para aquela cidade alguns dias antes da data marcada para a inauguração. Estava muito elegante com terno, sapato novo e uma gravata de seda fina. Havia combinado com o piloto que faria vários vôos e pagaria o total quando retornasse a cidade de origem. Chamava-se Dr. Paulo, engenheiro eletrônico. Dias antes telefonara para o prefeito anunciando que havia antecipado a inauguração por mudanças e alterações na sua agenda. Chegaria no dia seguinte, pela manhã.

O avião desceu às oito horas na pequena pista de pouso. O Dr. Paulo falou para o piloto que retornasse após dois dias para apanha-lo, pois ele teria outras viagens a fazer. O piloto assentiu com um sorriso nos lábios antevendo os lucros que teria com o novo e polido cliente.

Foi recebido pelo prefeito, pelos vereadores e por uma comitiva composta de pessoas importantes da cidade. Havia até uma pequena banda de música presente na recepção. Entre abraços e cumprimentos foi conduzido e instalado na casa do prefeito. Esforçou-se para não aceitar, mas foi gentilmente convencido a não ir para um hotel e nem fazer refeições em restaurantes. Educadamente desculpou-se por ter antecipado a inauguração e pelo fato de ter sido obrigado a substituir o outro engenheiro que havia ficado doente, cujo nome constava no jornal.

Nesses dois dias inaugurou a obra junto com as autoridades, passeou pela cidade, compareceu a almoços e jantares oferecidos e ainda ensaiou um breve namoro com a filha do prefeito. Era um belo partido para qualquer moça que estivesse interessada por um jovem engenheiro solteiro e competente.

Numa conversa com o prefeito, o Dr. Paulo, um pouco embaraçado, anunciou que havia esquecido o seu talão de cheques e que estava com pouco dinheiro no bolso. O prefeito sorriu e, com palmadinhas no ombro, perguntou: “... o Dr. precisa de quanto?”. O Dr. Paulo agradeceu a oferta, mas insinuou que ainda teria de fazer outras viagens e, para isso precisaria de uma quantia maior. O prefeito insistiu e lhe fez a proposta: “... Doutor fique tranqüilo, o senhor vai aceitar a minha oferta e quando concluir as viagens pode depositar o dinheiro na minha conta. Qual é o problema?” Chamou um de seus assessores e determinou que fosse ao banco sacar uma razoável quantia para acalmar o preocupado engenheiro. Ele havia percebido o interesse da filha pelo ilustre visitante e os havia deixado conversando, em algumas oportunidades, talvez imaginando em ter futuras alegrias. Quem sabe se aquele simpático jovem poderia vir a ser um dia mais um membro da família? A sua filha mais nova era a única das filhas que ainda estava solteira.

No terceiro dia o avião do Dr. Paulo desceu na pista e os abraços e apertos de mão se repetiram. Todos batiam palmas e sorriam enquanto o Dr. Paulo acenava do avião. O prefeito estava emocionado e sua filha não pôde conter as lagrimas. Aquele Dr. Paulo era mesmo um homem muito atraente, um pedaço de mau caminho.

Minutos após a decolagem pousava na mesma pista outro avião. Dele desembarcou o engenheiro que na data e hora certas, segundo o publicado no jornal, estava chegando para inaugurar a usina termoelétrica. Chamava-se Dr. Mauricio e vinha acompanhado de mais dois auxiliares para cumprir sua missão. Em outro local descia do avião o Dr. Paulo, satisfeito e com dinheiro no bolso. Pagou o piloto com um “cheque frio” e combinou novas viagens para a próxima semana. No mesmo dia tomou um barco para outra cidade e comprou outro jornal.

Ria-se muito dos casos do Paulo e ele se sentia à vontade no quarto dos residentes. O residente que acompanhava seu caso fora avisado, em diferentes ocasiões, sobre os riscos da excessiva intimidade do Paulo com os residentes e com outros funcionários do hospital. Com apenas um mês de permanência ele já havia obtido privilégios e a confiança do residente responsável por ele. Trabalhou na secretaria onde executou um excelente trabalho de organização e limpeza. Organizou o almoxarifado e deu nova vida a sala da direção. Era rápido e inteligente, respeitado pela maioria dos pacientes e simpático com todos. Obteve cópias de quase todas as chaves de locais importantes do hospital. Já havia feito amizade com o diretor tornando-se seu colaborador e seu “moleque de recados”. No segundo mês já tinha o hospital nas mãos.

Sua irmã Ana telefonava para o residente responsável solicitando informações sobre seu comportamento. Estava satisfeita com os progressos obtidos e pelo fato do Paulo ter ficado dois meses com uma conduta irrepreensível. Mas ficou desconfiada e ligou para seu parente residente para confirmar as informações. Ele informou que sua saída se daria em menos de um mês e que não acreditava na sua recuperação. Tinha a impressão que o Paulo estava preparando o terreno para fugir; já havia comunicado essa idéia ao residente responsável, mas não queria interferir no encaminhamento do caso.

Só faltava uma semana para expirar o prazo da sua permanência quando, num sábado bem cedo, o Paulo sumiu. Sumiram junto com ele: uma razoável quantia em dinheiro da secretaria, máquinas de calcular e de datilografia, vários objetos do diretor e alguns remédios do almoxarifado. Pequenos empréstimos feitos a pacientes e funcionários e alguns cheques de residentes foram junto com ele. Para o residente parente deixou um bilhete: “Prezado tio, até a próxima vez”. Para o residente responsável outro: “Peço desculpas ao amigo, mas minha vida é lá fora”. E assinava embaixo dos bilhetes com uma verdadeira letra de doutor; abaixo dela o carimbo do hospital.










CAPÍTULO IV

O homem-árvore
Naquele tempo se iniciava uma intensa reorganização na estrutura de atendimento do hospital. Os pacientes andavam de um lado para o outro sem atividades, sem plano de trabalho individualizado ou grupal, vagueando a toa pelos corredores e dependências do hospital. Era um verdadeiro depósito de doentes mentais, um hospício.
Uma figura conhecida era vista quase sempre no mesmo lugar. Plantado no corredor de braços abertos, um homem de meia idade e barbudo permanecia imóvel. Seu cabelo era grande e desalinhado; seus olhos eram vermelhos e parados como todo o resto do corpo, fixos no infinito. Parecia um cristo redentor com traje de mendigo.

Nesse dia o residente resolveu aproximar-se dele e colocou-se a sua frente. Perguntou seu nome. Nem se mexeu. Tentou várias vezes fazer contato e não obteve qualquer resultado. Seu cheiro era azedo, uma mistura de fermentações variadas. O residente resolveu sair e ficar de longe observando. De vez em quando ele mexia o braço direito para assoar o nariz com a ponta da camisa rasgada e imunda. Eram poucas a vezes que saia da imobilidade para coçar a orelha ou a bunda.

O residente desistiu e foi ao arquivo procurar seu prontuário. Lá encontrou parte da sua estória. Considerava-se uma árvore, uma planta. Costumava enfeitar-se com folhas que ficavam cuidadosamente amarradas as suas roupas. Não podia se mexer muito porque – segundo acreditava – as flores e frutos que imaginava pendentes de seus galhos (braços) poderiam cair. Não gostava de andar ou correr porque as plantas não fazem isso – argumentava. Considerava-se um autentico vegetal.

Foi encaminhado ao hospital pela polícia porque ficava imóvel, de braços abertos, no meio da rua, atrapalhando o trânsito e arriscando sua vida. Várias vezes foi retirado das ruas e para lá tornava a ocupar a mesma posição.

Era necessário ter paciência para ficar observando durante longo tempo àquela figura curiosa do homem-árvore. Enquanto comia ou andava seus movimentos eram muito lentos e cuidadosos e só costumava se comunicar com o residente que o acompanhava.

Pedi ao residente que o internara para acompanhar junto com ele aquele caso curioso. Só conversava com aquele colega e só para ele desvendava os seus mistérios de planta. Não comia alimentos do seu reino vegetal e bebia muita água. Quando chovia, saía devagar e ficava de braços abertos aproveitando a chuva ou se postava debaixo de alguma bica para beneficiar-se com o jorro da água.

Certa vez cavou um buraco no quintal, enterrou seus pés, e com uma lata velha molhava, de tempo em tempo, as suas raízes (pés). Mudava com freqüência a sua identidade vegetal. De manhã poderia ser uma jaqueira, de tarde u'a mangueira e de noite um abacateiro. Gostava das árvores frutíferas. Nunca pretendera ser um capim ou um pé de couve, segundo as informações do residente.

Só deitava para dormir quando ninguém mais estivesse olhando. Dormia encolhido sobre um cobertor velho, em posição fetal. De manhã bem cedo voltava à posição original de planta. Dava muito trabalho para fazer refeições e pedia que os outros pacientes colocassem a comida bem devagar em sua boca.

Um dia o homem-planta sumiu. Foi encontrado morto no dia seguinte, no fundo do quintal, debaixo de uma goiabeira. Estava deitado sobre o seu lençol velho e bem escondido sob um capinzal fechado. Ficamos tristes com a morte daquela planta humana. Ele e seus mistérios vegetais foram enterrados juntos. Nós havíamos perdido mais uma chance de penetrar e compreender o misterioso mundo do comportamento humano. A causa da morte estava escrita num atestado de óbito: parada cardíaca. Sua família não foi encontrada e teve de ser enterrado como indigente.










A promessa

Nas tardes de sábado os estudantes residentes gostavam de reunir-se no quarto coletivo para conversar. As camas, dispostas uma do lado da outra, ficavam cheias de jovens de bermudas e sem camisas.

Rapazes e moças da faculdade, que pretendiam ingressar no hospital ou por simples curiosidade, ficavam conversando a tarde inteira conosco no quarto. Sentados ou deitados nas camas contava-se piadas, falava-se de vários assuntos ou cantávamos acompanhados pelo violão e berimbau. De noite poderiam surgir vários programas. Comentários sobre festas, filmes, peças de teatro ou sobre simples farras, circulavam por todo lado. Era a juventude aproveitando as folgas da faculdade.

A grande e antiga porta de madeira do quarto foi aberta de forma barulhenta e súbita. Todos pararam e olharam. Em seguida ouviu-se um coro de palmas, vaias e assobios. Sorrindo e se rebolando, a figura do Roberto vinha se aproximando do grupo de jovens. Era o residente plantonista do dia. Calçava sapatos brancos, jaleco branco e calças "jeans". Era baixinho e engraçado, um ótimo colega. Havia acabado de internar mais um paciente.

Já de noite, quando quase todos tinham ido embora, ele falou que àquele parecia ser um caso bem interessante. Veio com seu pai e um irmão que narraram sua estória. O paciente era magro e alto, olhos bem abertos, que pulavam de uma para outra pessoa. Quase não mexia com a cabeça. Quando alguém falava, ele apenas virava os olhos na direção da pessoa e ficava prestando atenção. Havia dois meses que não articulava uma só palavra e nem emitia um som qualquer. Tinha parado de estudar e gostava de ficar só no seu quarto. Tinha vinte e dois anos e, uma semana após ter brigado com a namorada, parou de falar com todo mundo. Quando alguém lhe fazia uma pergunta arregalava os olhos e passava a língua nos lábios; repetia sempre esse gesto e era só o que fazia.

No hospital, após algum tempo, resolveu comunicar-se através de gestos, sinais e mímica. Não aceitava escrever ou desenhar. Não gostava de participar de grupos, mas arrumava sozinho sua cama e era muito limpo e organizado. Ainda não conseguia virar a cabeça; quando alguém fazia barulho às suas costas, girava o corpo inteiro para poder olhar. Parecia um robô quando andava.

Seu nome era Pedro. Obedecia a todas as normas do hospital e gostava de marchar. Havia cumprido bem o serviço militar e seu corte de cabelo permanecia o mesmo dos tempos de quartel. Alguns pacientes descobriram o gosto de Pedro pela marcha e pelas ordens militares. Conseguiram um velho cabo de vassoura e fizeram de uma folha de jornal um capacete para ele. Pedro agora já possuía um fuzil e um belo capacete. Certa noite de plantão o Roberto ouviu uma algazarra vinda de uma enfermaria próxima. Eram duas horas da manhã e ele vinha andando pelo corredor vazio, após ter atendido um paciente velhinho que sofria de bronquite alérgica.

Devagar, caminhou para a enfermaria e ficou observando. A cena era engraçadíssima. Vários pacientes formavam um corredor humano, batiam com pedaços de pau nas camas de ferro ou em pequenas latas. Um paciente, com um canudo de papelão na boca imitava uma corneta. Todos desentoavam o hino nacional. Pedro, com seu capacete de papel e com o cabo de vassoura ao ombro, marchava no meio e ia de uma extremidade a outra da enfermaria. Seu rosto era duro e sério como o de um verdadeiro militar e o fundo do seu pijama era frouxo e pendia como um saco velho. O pano branco e transparente do pijama deixava entrever, contra a luz, os seus órgãos genitais que balançavam de um lado para o outro enquanto marchava. Todos estavam concentrados e cônscios dos seus deveres naquela magnífica parada militar.

O homem da corneta tocava fora do ritmo, mas ninguém se importava com isso. A bateria estava mais entrosada, mas uma meia dúzia de pacientes semi-sedados se encarregava do contra-ritmo. Estavam tão envolvidos no desfile que não perceberam a cabeça do Roberto esgueirando-se pela porta para assistir aquele triunfante espetáculo marcial.

A barriga doía e os olhos lacrimejavam de tanto rir. O Roberto assustou-se quando pressentiu que alguém se aproximava por trás dele. Era o enfermeiro do plantão noturno que também tinha ouvido a barulheira. Colocou o dedo nos lábios, em sinal de silêncio, para que ele não perturbasse o espetáculo. Ficaram ali assistindo e rindo por vários minutos.

De vez em quando o líder do grupo pedia silêncio e dava ordens para o Pedro: "Meia-volta, volver!". "Descansar!". "Apresentar armas!". Todas essas ordens eram obedecidas e quando o Pedro passava perto do líder, batia continência. Mas não falava uma só palavra.

Após alguns minutos, residente e enfermeiro resolveram interromper a parada militar, pois já estava incomodando as outras enfermarias. Apareceram de corpo inteiro na porta e os pacientes notaram a presença. A bateria parou, o corneteiro escondeu o seu canudo debaixo da cama e o Pedro tirou o capacete, guardou o cabo de vassoura e se enfiou embaixo do lençol. Todos deitaram. Só os pacientes semi-sedados continuaram batendo nas latas. Retiraram as latas e as baquetas das suas mãos e pediram que fossem dormir porque já era muito tarde. O residente foi para o quarto com os olhos cheios de lágrimas e a barriga doendo de tanto rir. Custou a dormir nessa madrugada. Na cama ao lado roncava o outro residente que acordou assustado com as gargalhadas do Roberto; perguntou o que estava acontecendo e se ele estava passando bem. Quase não conseguia falar e contar o que acabara de assistir na enfermaria. O outro estava com muito sono e deu apenas um leve sorriso.

O tempo passava e Pedro não falava, só recebia ordens e marchava. Certo dia o Roberto entrou pela porta do quarto ofegante e excitado. Mal conseguia falar. Todos perguntaram o que estava acontecendo. Entre uma e outra respiração forte, disse: "o Pedro falou!". Todo mundo ficou imóvel e alguém perguntou: "como foi...?".

Havia muitos meses que o residente não mais chamava o Pedro para entrevistá-lo no consultório. Era uma pura perda de tempo. Preferia vê-lo na enfermaria, perto de sua cama. Comunicava-se com ele através de sinais e de pequenos bilhetes escritos.

Naquele dia, ao entrar na enfermaria, todos os pacientes ficaram em silêncio e só o Pedro falou: "bom-dia, doutor!". Esse sonoro "bom-dia" deixou o residente boquiaberto e provocou uma salva de palmas entre os pacientes. Em seguida o Pedro fez um breve discurso e foi novamente aplaudido pelos pacientes e também pelo residente. Não parava de falar com todo mundo, num ritmo tão rápido que mais parecia um locutor esportivo. Estava descontando o tempo em que permanecera calado.

O Roberto o conduziu para o consultório e lá passou a ouvir as razões desse milagre. Disse-lhe o Pedro que um dia estava em sua casa, trancado no quarto, quando uma voz que vinha de dentro de sua cabeça deu-lhe uma ordem. Era uma ordem que o proibia de falar durante um ano inteiro. Se conseguisse cumprir teria de volta a namorada e poderia casar-se com ela. Anotou num pedaço de papel o dia e a hora em que a voz imperativa o proibira de falar e decidiu fazer a promessa. Ficaria um ano sem falar para poder reconquistar a namorada.

Dito efeito. O Pedro mostrou para o residente o papel onde anotara a data e a hora da promessa. Estava tudo certo, não passou nem um minuto sequer do tempo combinado. Fazia um ano certo que ele parara de falar e agora reconquistara a voz. O acordo estava cumprido e o papel era o documento original desse acordo.

Pedro queria sair do hospital naquele dia para encontrar-se com a namorada e mostrar a ela aquele comprovante do acordo cumprido. Ele era um rapaz ingênuo e tímido. Nunca havia experimentado uma relação sexual com mulher. Só sabia masturbar-se e contar piadas eróticas no tempo em que falava. Na verdade não tinha namorada. Havia se apaixonado pela vizinha e não conseguia aproximar-se dela para falar do seu amor e do seu desejo. Sua namorada era fruto da sua imaginação e a "voz" que lhe dera a ordem era uma alucinação da sua própria mente, uma defesa que ele poupava o sacrifício e a dificuldade que tinha em fazer contato com as mulheres.

Introduzimos Pedro em um grupo de ajuda e o fomos auxiliando a conhecer o mundo feminino. Descobrimos que sua família era evangélica e observava valores ultramoralistas. Sua mãe era uma mulher fortemente castradora, parecia mais um sargento-de-saias. Pedro crescera recebendo ordens e ameaças divinas, acreditando no fogo do inferno e no juízo final.

Fomos ensinando a ele como escrever cartas românticas, fazer poesias e aproximar-se com segurança das mulheres. Participavam do nosso grupo duas assistentes sociais e algumas estudantes de medicina, todas muito bonitas. Sentiam medo que Pedro se apaixonasse por elas e sofresse novas decepções. Nós, os homens do grupo, estimulávamos para que ele falasse dos seus sentimentos e desejos. Não era proibido falar de coisas tão bonitas, tão naturais. Ele não precisava ter pressa, só precisava treinar. Acabaria encontrando uma verdadeira namorada que gostasse dele.

Após algum tempo observamos que havia parado de marchar, não empunhava mais o "fuzil" e nem colocava o "capacete" na cabeça. Os outros pacientes insistiam, mas ele parecia mais interessado na arte de escrever cartas e paquerar.

Havia no hospital três grupos que faziam o trabalho de acompanhamento intensivo de pacientes. Mas, entre nós, as informações da evolução de cada caso eram trocadas com muita facilidade. Todos ficavam sabendo como se desenvolvia cada plano de trabalho e das suas dificuldades e êxitos. Escolhíamos os pacientes mais carentes e, de preferência, os do grupo da "abandonoterapia". Sabíamos que não era possível atingir toda a população hospitalar para acompanhamento intensivo. O hospital era pobre e não possuía recursos para aumentar o número de funcionários e residentes. Do grupo da "abandonoterapia" eram selecionados os pacientes mais regredidos e complicados. Precisávamos aprender a lidar com esses casos.

O grupo que ajudava Pedro atendia vários outros pacientes, mas, para cada caso, mudava de nome; o grupo de Pedro chamava-se "Amor e Desejo". Nesse plano de trabalho o objetivo era: “fazer com que a voz de Pedro, saindo da cabeça, descesse para o coração, ganhasse impulso para cima e saísse pela boca”. Queríamos que aprendesse a falar em alto e bom som sobre seus sentimentos, para que sua amada o ouvisse e pudesse compreendê-lo. Se não conseguíssemos isso, Pedro continuaria a ser um soldado raso, sem voz e sem vontade própria. Um recruta que só saberia marchar pelas enfermarias da vida com um capacete de papel na cabeça e um cabo de vassoura no ombro. Um ridículo soldadinho mudo que só sabia cumprir ordens e bater continência para os outros.

Certa tarde, numa reunião do grupo Amor e Desejo, Pedro, timidamente, fez uma comunicação. Estava gostando de uma jovem paciente da ala feminina. Ela tinha dezoito anos, morena, cabelos longos e negros, muito calada e tímida como ele. Já haviam conversado em duas oportunidades: a primeira vez foi dentro do hospital, no salão de festas, onde havia ocorrido uma tarde-dançante. Era uma festa que acontecia mensalmente para estimular a ressocialização entre pacientes da ala masculina e feminina. A segunda vez foi durante um passeio ao zoológico da cidade. O seu nome era Rita.

Éramos muito criticados pelos conservadores do hospital por causa dessas festas e passeios. Nos acusavam de estimular a libidinagem entre os pacientes. Enquanto os namoros aumentavam e os pares já podiam abraçar-se e beijar-se furtivamente, diminuíam os casos de homossexualismo masculino e feminino nas alas, ao mesmo tempo em que baixava a freqüência das agressões. Tínhamos que ter muito cuidado com esses encontros para evitar casos de gravidez dentro do hospital e a possível disseminação de doenças de transmissão sexual. Os grupos de homens e mulheres, não poderiam ter mais de trinta pessoas; um grupo maior seria impossível de ser controlado. Nas primeiras festas havíamos encontrado alguns casais escondidos no banheiro ou atrás de árvores, se preparando para terem relações sexuais. Estávamos pisando num terreno perigoso e muito polêmico dentro do hospital.

Convidamos Rita para participar do nosso grupo. O casal, muitas vezes de mãos dadas, expressava seus sonhos e fantasias de amor. No início se mostravam tímidos e desconfiados, mas, com o tempo, passaram a falar e a trocar olhares significativos. Estavam aprendendo que amor e desejo também fazem parte da vida, são bons e só necessitam de uma dose de bom senso para evitar o surgimento de gravidez irresponsável. Quando amor e desejo ficam muito reprimidos podem "adoecer" a cabeça das pessoas, transformando-as em “bonequinhas de pano” ou “soldadinhos de chumbo”. Ambos já podiam abraçar-se e beijar-se à vontade nas festas. Não precisavam ficar envergonhados, escondendo-se pelos cantos, para manifestarem o seu amor.

Pedro conseguira ter a primeira namorada, de verdade, dentro do hospital e ambos progrediam muito nas outras atividades individuais e de grupo. Trocavam correspondências pelo "Correio Sentimental", órgão de comunicação entre pacientes das alas masculina e feminina, coordenado pelas assistentes sociais.

Nos grupos de atividades artísticas de Práxiterapia (terapia ocupacional) o número de cartões cheios de corações com flechas, mensagens românticas, convites eróticos e frases poéticas, aumentou consideravelmente após o inicio das festas e passeios conjuntos.

Numa tarde de terça-feira, o grupo Amor e Desejo teve a mais infeliz das idéias. Convidou dois familiares de Pedro para participarem da reunião do grupo e comunicou o plano de trabalho que estava sendo desenvolvido para sua recuperação. Encerrada a reunião os dois parentes se dirigiram ao diretor do hospital e nos acusaram de perverter os princípios morais e religiosos de Pedro; de atentar contra a sua castidade e induzi-lo ao pecado. Éramos os demônios que queriam destruir a pureza de Pedro e o estávamos impedindo de trilhar pelo caminho da salvação de sua alma rumo ao Reino do Senhor.

No dia seguinte Pedro foi retirado do hospital pela família enfurecida. Retornou ao mesmo quartel familiar onde aprendera a ter alucinações, receber ordens de silêncio e obediência, marchar com cabos de vassoura e com capacetes de jornal. Só Rita permaneceu no nosso grupo e com o tempo arranjou outro namorado, para quem escrevia e mandava cartões toda semana.

Coitado do Pedro. Será que voltou a ser soldado raso? Ou se insurgiu contra os seus superiores e mandou todo mundo a vassouradas para as profundezas do inferno? Não tivemos mais notícias dele. A partir dessa fatídica terça-feira o nosso grupo, a exemplo de Pedro, também fez uma promessa: "jamais voltaríamos a convidar fanáticos religiosos para participar das nossas reuniões de acompanhamento intensivo de casos".




O filósofo


Havia um paciente jovem na ala masculina. Tinha vinte e cinco anos, era branco e possuía uma barba bem cuidada e cabelos longos. Vestia-se modestamente e andava muito limpo, trazendo sempre alguns livros debaixo do braço. Jean-Jacques Rousseau, Bertrand Russell, Michel Foucault e Eric Fromm eram seus autores prediletos.

Era alto, pernas compridas, andar macio. Falava baixo, com palavras cuidadosamente articuladas e com um português precioso, de fazer inveja a qualquer mestre da língua pátria. Gostava de conversar com os residentes e estudantes que visitavam o hospital. Havia passado no vestibular de Filosofia, Ciências e Letras. Cursara até o primeiro semestre dessa faculdade.

Sua família era pobre e, por diferentes razões, resolveu abandonar o curso e correr mundo, como costumava dizer. Veio parar no hospital por que agredia seus familiares que o chamavam de "maluco". Na verdade era um neurótico comum como qualquer um dos médicos, funcionários ou residentes. Ia ficando no hospital porque não tinha para onde ir e sua família não o aceitava mais em casa.

Nunca se metia em brigas, pelo contrário, aconselhava outros pacientes, separava os lutadores e ajudava a enfermagem em diferentes serviços. Era um pacificador, um pensador. Vinha educadamente, após o almoço, perguntar se já tínhamos lido os jornais da manhã; levava-os para ler e os devolvia no final da tarde, dobrados e sem faltar uma folha sequer. Estava sempre bem informado.

Perguntamos se ele poderia transmitir as notícias que lia para outros pacientes que não tinham acesso às informações. Assentiu imediatamente e passou a fazê-lo. Era comum ver-se o filósofo rodeado de pacientes, explicando com calma e interpretando o conteúdo das notícias. Era o orador e porta-voz dos pacientes nas solenidades do hospital, ajudava os funcionários da terapia ocupacional e produzia textos, poesias e discursos que eram lidos em voz alta por outro paciente que treinava para se tornar um grande orador e político.

O filósofo tinha uma visão particular e realista da vida hospitalar, percebia as mudanças que estavam em andamento no hospital e nos elogiava e estimulava nesse sentido. Tomava conta da velha biblioteca do hospital e, vez por outra, ganhava livros novos que eram comprados através da "caixinha" do serviço social. Estava a par dos novos lançamentos literários e, através de empréstimos de colegas, conseguia lê-los.

Com o passar do tempo fomos descobrindo outras habilidades dessa figura humana impressionante. Na realidade conhecia o hospital melhor do que muitos médicos e funcionários. Era um terapeuta inato, paciente, compreensivo, inteligente e disponível para ajudar a quem precisasse. Nunca aceitou remédios do hospital por que tinha a segura convicção de que "as substâncias químicas só tem efeito sobre o corpo e não atuam nas emoções". Era o que falava sempre que lhe ofereciam remédios.

Convidamos o Péricles - esse era o seu nome - para participar dos nossos grupos de acompanhamento intensivo de pacientes. Ele ficou muito emocionado e aceitou prontamente o convite. No dia seguinte produziu um texto belíssimo falando sobre a natureza humana, o trabalho com doentes mentais e a futura extinção dos hospícios. Ficamos tão impressionados com o texto que resolvemos deixá-lo em exposição permanente, pendurado na parede do nosso quarto. Foi transcrito com letras bem elaboradas em papel-linho e ganhou moldura com vidro e tudo. Estudantes e visitas que iam ao nosso quarto não acreditavam que aquela produção tivesse saído da cabeça de um paciente.

O Péricles assistia a todas as reuniões e sempre era uma peça de grande valor no trabalho de ajuda a outros pacientes. Era nosso informante, que levava e trazia discretamente notícias e fatos que ocorriam nas alas masculina e feminina. Pelo fato de viver entre eles era natural que os conhecesse melhor do que nós, num certo sentido da convivência em grupo. Suas sugestões eram sensatas por que se baseavam na observação direta e próxima de quem sabia interpretar com clareza as situações. Era um co-terapeuta atuante e responsável.

Descobrimos que Péricles tinha uma namorada na ala feminina. Ela possuía belos olhos verdes, temperamento calmo e contemplativo como o dele. Queria ser cantora quando saísse do hospital. Para ela o nosso colaborador compunha letras de música, poesias, textos românticos e filosóficos. Conversavam sobre essas produções quando se encontravam. Recebia dela relatórios escritos sobre fatos importantes que ocorriam na ala feminina, através do "correio sentimental". Através desses relatórios detalhados Péricles se mantinha informado do funcionamento interno da ala feminina, das pacientes que melhoravam e pioravam e de outras notícias mais. Por essa razão podia trazer informações tão precisas sem necessitar quebrar o regulamento do hospital, que proibia a entrada de pacientes do sexo masculino na ala feminina. Era um diplomata e um romântico espião com ares de filósofo.

Um dia pediu uma sugestão. Havia lido nos jornais, na página de classificados, uma oferta de emprego para vender livros. Sabia que um dia teria que sair do hospital e resolver sua vida lá fora. Demos a maior força para o Péricles. Emprestamos roupas, sapatos e dinheiro. Naquela manhã bem cedo ele apareceu de cabelos cortados, barba feita e dentro de um bonito terno, emprestado por um residente do quarto. Ajeitamos o nó da sua gravata e, numa olhada geral, vimos diante de nós um perfeito e elegante vendedor de livros. Colocou sua autorização de saída no bolso e foi para o ponto do ônibus, que ficava em frente ao portão do hospital.

Chegou no fim da tarde pulando de alegria e abraçando todos os que encontrasse pela frente. Entrou no nosso quarto com um catálogo grosso debaixo do braço. Falava, entre sorrisos, que tinha sido admitido como vendedor e assinara um contrato de trinta dias para se submeter a um teste de vendas. Teria que cumprir uma cota mínima de vendas para poder ser admitido como vendedor permanente da empresa. Não era uma tarefa difícil, havia muitos livros interessantes e de fácil comercialização, pelo que podíamos observar no catálogo.

Montamos um "posto de vendas" na portaria do hospital e dentro do nosso quarto. Transformamos o Péricles em paciente externo, isto é, tinha autorização durante um mês para entrar e sair livremente do hospital; só precisava voltar para dormir. Ajudamos comprando e vendendo livros para o nosso filósofo, mas esse esforço não teve muito valor, pois, na rua, o novo vendedor conseguiu cobrir a cota mínima em apenas treze dias. Estava muito alegre e trabalhava como um louco. Teria de apresentar uma carta de referência para a empresa no final do mês, documento necessário para poder ser admitido como funcionário do quadro de pessoal. Estava preocupado.

Conseguimos com o diretor e com mais dois médicos do hospital uma solução para o problema. Referências elogiosas sobre a conduta do "auxiliar de enfermagem" Péricles, que havia trabalhado em suas clínicas particulares durante vários anos e sobre sua conduta ilibada e desempenho, dedicado ao trabalho, etc., etc. O nosso colaborador estava empregado e nós perdemos um valioso informante e conselheiro dentro do hospital.

No final do mês fez questão que recebêssemos o dinheiro que lhe foi emprestado. Abriu crédito numa loja onde comprou roupas e sapatos para ele e para a namorada. Trouxe de presente vários pares de meias e os distribuiu entre os que o ajudaram a conseguir o emprego. Estava feliz. Ficou durante oito meses trabalhando fora e dormindo no hospital. Levava seu almoço numa marmita e só voltava para jantar e dormir.

Numa tarde de sábado entrou no quarto triste e cabisbaixo, estava passando por uma grande decepção. Havia voltado da rua trazendo uma caixa de bombons de chocolate embrulhada em papel de presente. No domingo daria os bombons à namorada, pois nesse dia ela faria aniversário. Voltou com o presente nas mãos e foi ao quarto desabafar conosco. Ela havia arranjado outro namorado e não quis receber o presente. Comemos os bombons junto com Péricles enquanto filosofávamos a respeito das surpresas que o amor nos oferece a cada instante. Ele, de certa forma, compreendia que a havia trocado pelo trabalho e não podia se queixar muito. Tentaria esquecê-la e procuraria encontrar outra namorada.

Certa vez anunciou que tinha restabelecido as relações com sua família. Tinha conta bancária, talão de cheques e, além do salário, ganhava boas comissões vendendo livros e revistas para hospitais, clínicas e escolas. Pediu que providenciássemos sua alta para antes do Natal. Iria passá-lo junto com a família e com sua nova namorada, uma colega de trabalho.

No dia em que Péricles saiu, o hospital ficou menos culto e com um colaborador a menos. Voltava de vez em quando para nos visitar e trazer novidades que saiam quentinhas do prelo da "sua" Editora.





CAPÍTULO V

O orador

Para nós era comum entrar na ala masculina e encontrar uma figura barulhenta, vestida com um paletó surrado e um fiapo de gravata pendurado no pescoço. Gritava em altos brados e deitava uma falação interminável de cima de um caixote de madeira. Era Raul, discípulo de Péricles, um brilhante orador e destemido político. Raul era um contestador, vibrante e agressivo orador que queria mudar o mundo. Sua tribuna era um velho caixote de cerveja ainda bastante forte para manter no alto os seus longos e inflamados discursos.

Havia sempre uma meia dúzia de pacientes dispostos a escutá-lo. Ficava horas discursando e não parava enquanto houvesse, pelo menos, um espectador a lhe prestar atenção. Quando todos se retiravam ele encerrava a oratória, sempre com a expressão: "Deus salve o Brasil!". Guardava o caixote embaixo de uma escada do pátio onde ninguém mexia. Não suportava interrupções durante sua fala e quando alguém insistia, ficava nervoso e gritava: "Não dou apartes! Não dou apartes!".

Os únicos detalhes que destoavam um pouco no seu traje de grande político e orador emérito estavam nas suas calças. Eram muito apertadas, acabavam um palmo acima dos tornozelos e não possuíam botões na braguilha. Algumas vezes, quando gesticulava muito, ou fazia movimentos bruscos, tinha que se recompor para evitar risadas da platéia. Mesmo assim não perdia o fio da idéia e prosseguia imperturbável. Em certos momentos o caixote balançava perigosamente, porém nunca foi visto despencar da sua tribuna.

Não gostava de críticas ou sugestões de quem quer que fosse. Apenas Péricles, o filósofo, tinha influência sobre ele, escrevia seus discursos e o aconselhava sobre temas importantes e técnicas de impostação da voz. Tinha melhorado muito a sua oratória desde que se dispôs a receber conselhos e supervisão do seu professor e amigo. Seus temas eram muito variados. Podia falar sobre política, economia, música, animais domésticos, pássaros e borboletas. Quando falava sobre Política ou sobre as Forças Armadas, o tom da sua voz se tornava mais forte e agressivo e o seu pescoço avermelhava e se enchia de grossas veias.

Alguns pacientes o avisaram, talvez para inflamar mais seu ânimo, que ele poderia ser preso a qualquer momento por causa do teor subversivo das suas idéias. Deveria falar baixo para não ser ouvido por algum militar ou policial que por ventura passasse nas imediações do hospital. Estávamos no ano de 1968, em plena vigência da ditadura militar, mas, mesmo assim, o Raul, baluarte da democracia, não baixava a sua voz. Mesmo que fosse preso e torturado - dizia - levaria sua tribuna para dentro da prisão e, de lá, continuaria a sua luta pela liberdade do povo e pela salvação do Brasil!

O Raul sofria de uma gagueira perturbadora. Evitava falar fora dos discursos porque, freqüentemente, era alvo da zombaria dos outros pacientes. Não conseguia falar uma palavra sem se engasgar com a segunda. Sentia muita vergonha e costumava andar com lápis e papel no bolso para, através de bilhetes, resolver algumas questões de comunicação. De resto, preferia permanecer calado. Não gaguejava durante os discursos, sua voz era forte e suas palavras fluíam com incrível facilidade.

Levamos o orador para submeter-se a diversos exames especializados e chegamos à conclusão de que ele era portador de uma gagueira puramente emocional. Durante um ano de buscas não conseguimos qualquer pista que nos levasse aos familiares de Raul. A única informação, dada pelo próprio Raúl, era a de que ele havia sido internado aos 15 anos de idade, num reformatório para menores, na ilha de Cotijuba. Não conheceu sua família. Lembrava de uma creche onde havia pessoas que cuidavam dele quando era criança.

Fomos orientados por uma fonoaudióloga para ensinar o Raul a cantar. Assim ele não precisava forçar suas cordas vocais e aprenderia uma nova forma de expressão fônica mais suave e tranqüilizadora.
O maior desejo de Raul era o de ter um discurso gravado em fita cassete. Fizemos com ele uma negociação: aprenderia primeiro a cantar e, após gravar algumas músicas, poderíamos gravar seus discursos. Ele aceitou. Apresentamos o Raul para um paciente que tocava sanfona e, em seguida, para outro que batia bumbo. Formado o trio, iniciaram-se os ensaios que aconteciam três vezes por semana e eram coordenados por um enfermeiro que entendia de música. Após um longo e estafante trabalho o enfermeiro comunicou que o trio já estava em condições de gravar. Nesse período de treinamento o orador quase não fazia discursos, pois era aconselhado pelo enfermeiro para não cansar sua garganta.

O trio não era exatamente um grupo artístico de renome internacional, mas, quando se apresentava nos eventos festivos, atraía um razoável número de fãs que, ao término de cada número musical, batia palmas e pedia "bis". Foram gravadas cinco músicas e três discursos na fita. Raul foi diversas vezes orientado para não gritar no microfone e evitar que a gravação saísse ruim.

Enquanto cantava ele não gaguejava e, mesmo fazendo os discursos em voz baixa e pausada, estava conseguindo se sair bem. A sua gagueira estava diminuindo a proporção em que sua fama de cantor aumentava. Seus colegas de trio estavam recebendo muitos bilhetes elogiosos, vindos da ala feminina, que o deixava bastante preocupado. Mas agora era orador e cantor, já não se interessava muito pela política. Disse que quando conseguisse juntar dinheiro iria comprar um gravador e várias fitas, e aí poderia gravar qualquer coisa que quisesse.

Há semanas que essa idéia não lhe saía da cabeça. Andava de um lado para outro cantarolando músicas sertanejas, talvez se preparando para algum projeto artístico no futuro. Certo dia o Raul fugiu do hospital e nunca mais foi visto. Soubemos de notícias suas quase um ano depois. Escreveu uma carta com endereço do hospital e dirigida para o enfermeiro que o havia iniciado na arte da música. Dizia que era vaqueiro e vivia numa fazenda no interior. Possuía um gravador e algumas fitas cassetes. Cantava e gravava nos fins-de-semana com o pessoal da fazenda. Nada informava sobre a sua gagueira.













A experiência com drogas


Naquela época a droga da moda era a maconha. Estava presente em todos os lugares e percorria todas as classes sociais. Na universidade, na rua, nas boates, enfim, em quase toda parte era consumida com razoável freqüência. No hospital ela transitava sob o olhar moralista dos conservadores e com aquele gostinho de proibição tão tentador, que despertava maior interesse nos jovens.

Apenas um, entre os cinco residentes, usava eventualmente a droga nos fins-de-semana e, quase sempre, fora do hospital. Entre os pacientes havia cerca de trinta pessoas, cujo principal motivo da internação estava relacionado com o uso excessivo e habitual da maconha. O contato com eles se tornava bastante difícil pelo fato de usarem uma linguagem própria, uma gíria específica e grupal, um verdadeiro código secreto, particular aos entendidos em drogas.

Sendo jovens, nos sentíamos um pouco "caretas" e "por fora" desse mundo e dessa terminologia, que expressava estados mentais esquisitos, provocados pela ação da droga. Resolvemos um dia experimentá-la e organizamos uma série de sessões para observar como cada um agiria sob os efeitos da maconha. Decidimos que seriam escolhidos os domingos como os dias de testes, já que era raro recebermos visita nesse dia. Como éramos cinco, decidimos que o plantonista do dia ficaria observando e anotando a reação dos que estivessem experimentando a droga. Fizemos o rodízio e após cinco domingos todos fizeram uso da droga.

Era curiosa a forma pela qual a maconha atuava sobre o comportamento de cada um de nós: a fome desenfreada, os risos sem motivo aparente, o gestual e estranho e os neologismos utilizados, eram algumas das reações observadas. A maconha liberava, dos porões e do sótão do psiquismo, os conteúdos mais estranhos e desconhecidos da consciência e, através dos comportamentos, os deixava visivelmente a mostra.

Era interessante ver o residente, normalmente sóbrio e sério, só de cuecas e com o estetoscópio no ouvido, enfiar sua extremidade num canudo de cartolina e aproximá-lo do alto-falante da caixa de som para, assim, aproveitar melhor as deliciosas notas musicais. Ele dizia que via as notas musicais pairando no ar e podia pegá-las; elas tinham um intenso colorido e bailavam animadamente dentro do ritmo. Só os que estavam sob ação da droga conseguiram "ver" essas coisas e ainda sentir outras sensações diferentes.

Outro colega viu um "garfo fugindo" e saiu correndo atrás dele, morrendo de rir. Um outro viu sua cama transformada em um barco e, com duas vassouras, punha-se a remar desesperadamente para vencer a "correnteza". Pedia a ajuda de todos, pois se encontrava em grande perigo. Suava muito e só parou de remar quando chegou em "terra firme". A fome despertada pela maconha era tão forte que os quatro residentes, antes tão solidários e educados, brigavam agora por um pedaço de pão, como se fossem quatro crianças pequenas. Devoraram tudo o que havia na cozinha.

Outro residente, que há poucos dias tinha brigado com a namorada, agora chorava, cantava e fazia versos de amor para sua amada; olhava seu rosto e a beijava sem parar. Quando soltava o travesseiro, este estava úmido e todo babado de tanto amor.

Era assim no quarto dos residentes, tudo era possível. Não era à-toa que estávamos internados num hospital psiquiátrico. Só faltava um pequeno estímulo, como a maconha, para que nossas loucuras se mostrassem ao mundo. Os outros loucos estavam nas alas, e nós, concentrados naquele quarto, vivenciávamos nossas loucuras estimulados pela droga.

O residente-observador, sóbrio, anotava as reações e ria bastante; não compreendia nada, mas mantinha a porta do quarto bem trancada e a chave no bolso. Seria o nosso fim se alguém fugisse do quarto e saísse, desse jeito, pelo hospital. Provavelmente seria levado para a ala masculina e contido por algum enfermeiro dedicado e atento. Ficaria entre os seus colegas loucos e se tornaria um paciente durante algumas horas, até que o efeito da droga passasse. Poderia também ser expulso do hospital, pelo que constava no Regulamento Disciplinar Interno.

Talvez o maior efeito que essa experiência nos proporcionou foi a obtenção de um maior respeito e compreensão em relação aos dependentes de drogas do hospital. Essa experiência não mais foi repetida e cada um que cuidasse de si em relação às drogas e as alterações do comportamento que ela proporciona.







A namorada do residente

Um dos colegas do quarto tinha uma linda namorada. Uma loura insinuante e esbelta. Visitava o hospital com freqüência nos sábados e ficava horas conversando conosco. Era simpática, mas um pouco ingênua e orgulhosa de sua beleza. Sentia um ciúme doentio pelo nosso colega residente. Às vezes, em voz baixa, perguntava se alguma garota vinha conversar com ele no hospital. Sempre negávamos: "Jamais! Ele é muito dedicado ao trabalho. Ele te adora!".

Resolvemos um dia fazer uma sacanagem com o colega. Havia um grupo de pacientes jovens na ala feminina que estava sob tratamento pelo uso de drogas. Tinham um comportamento espalhafatoso e viviam paquerando os residentes. Mandavam bilhetes amorosos e eróticos, convites para transas sexuais regadas à maconha e anfetaminas; era o que mais se encontrava nas cartas e bilhetes endereçados ao quarto. Guardamos os bilhetes e uma carta que tinha sido enviada para o residente que namorava a garota loura. Pegamos um jaleco branco, pintamos os lábios com batom, carimbamos o jaleco com vários beijos e o guardamos.

Quando a princesa chegou naquele sábado, o seu namorado era o plantonista do dia. De vez em quando era chamado para atender lá dentro. Aproveitando sua ausência, colocamos nosso plano em ação. Tudo já havia sido previamente combinado. Ficamos bastante reticentes e estranhamente calados com ela. Depois de algum tempo ela, que conhecia nosso jeito alegre e comunicativo, falou: "O que está acontecendo com vocês hoje, estão tão calados”.Olhava perplexa e interrogativa para cada um de nós com seus bonitos olhos azuis.

Um colega falou: "Será que devemos contar o que aconteceu?". Olhava para nós, esperando a nossa reação. Todos, de cabeça baixa, olhavam para o chão com um misterioso ar de embaraço e dúvida. O clima estava ficando pesado quando ouvimos um barulho na porta. Ela foi aberta calmamente pelo namorado plantonista que, com um sorriso no rosto, aproximou-se da princesa e demorou-se num prolongado beijo. Em seguida pediu licença e dirigiu-se ao banheiro. Pedimos, entre sussurros, que ela não demonstrasse nada na frente dele; quando ele saísse iríamos continuar a conversa.

O colega voltou do banheiro, sentou-se na cama, ao lado da namorada, abraçou-a e ficou passando a mão carinhosamente nos seus cabelos enquanto conversava e nos dizia que teria de voltar novamente à enfermaria. Havia um paciente passando mal e ele acabara de prescrever um soro com antibióticos, o prognóstico não era dos melhores. Notou a frieza da namorada e, dirigindo-lhe um olhar carinhoso, falou: "Você está bem?". Ela só balançou a cabeça e esboçou um sorriso artificial. Ele levantou-se, deu outro beijo nos cabelos da loura e falou que iria demorar um pouco e depois voltaria.

A porta voltou a fechar-se e nós voltamos à carga. Tudo dava certo. Ouvimos os passos do colega desaparecendo no corredor. Ela interrompeu o silêncio cheia de curiosidade e falou: "E daí...?"; o residente que havia falado por último continuou: "Eu não sei se a gente deveria estar te falando sobre isso, mas o teu namorado precisa de ajuda. Parece não estar batendo bem da bola".

Falamos que ele não aceitava nossas ponderações sobre seus casos com as garotas da ala feminina. Do seu envolvimento íntimo com elas. Era um grupo de jovens desmioladas e, embora muito atraentes, apresentavam precedentes criminais graves. Mostramos os bilhetes e a carta. Apresentamos como prova o jaleco todo sujo de batom e arrematamos, dizendo que ele passava a maior parte do tempo na ala feminina. Poderia haver risco de gravidez, expulsão do hospital, comprometimento da sua futura vida profissional e complicações com os familiares das jovens pacientes.

A nossa beldade estava com rosto pálido e olhos arregalados, lendo a carta e os bilhetes. Suas mãos tremiam e as primeiras lágrimas começaram a cair. Apertou os olhos e ficou muda por alguns instantes e, logo em seguida, explodiu num choro convulsivo. O seu corpo desabou na cama como o de um animal abatido por um tiro. Afundou o rosto num travesseiro que estava próximo e que abafava suas lágrimas e sua voz.

Ficamos olhando, uns para os outros, e chegamos à mesma conclusão: a brincadeira tinha ido longe demais. Mas era assim mesmo. Nossas sacanagens eram proporcionais à loucura de cada um de nós e do hospital. Estávamos habituados a fortes emoções, grandes gargalhados e trágicos acontecimentos, que se misturavam no nosso dia-a-dia. Com movimentos de cabeça decidimos levar em frente a gozação. Deixamo-la desabafar um pouco e a confortamos com palavras de apoio, para que ela se recuperasse mais rápido. Estávamos preocupados com a volta do colega ou com a entrada de alguma visita no quarto.

Já quase refeita do choque inicial começamos a falar para ela não se preocupar, porque também estávamos fazendo tudo para ajudá-lo e tínhamos certeza que ele acabaria compreendendo e que aquela fase passaria. Era uma questão de tempo. Só temíamos que ele se contagiasse com alguma doença venérea grave. Talvez sífilis, gonorréia ou cancro. Pedimos a Deus que o protegesse com doenças mais leves como: micose ou "chato". Falava-se sério.

Fomos interrompidos por um grunhido profundo e súbito: "Cachorro! Vou matá-lo!". Era um brado guerreiro, cheio de ódio, que saía pelos olhos, pela boca e pelos poros da pele. A doce princesa havia se transformado numa guerreira feroz, numa amazona que clamava por uma lança e um cavalo, para estraçalhar o inimigo. Esmigalhar sua cabeça a machadadas e humilhá-lo sob as patas do seu cavalo. Arrancar-lhe o coração. Levantou-se de repente e queria ir até a enfermaria onde ele estava. Poderia estar com uma das garotas, naquele momento.

Acalmamos a jovem guerreira. Falamos bastante. Perguntamos se ela gostava dele; que essa não era a melhor forma de ajudá-lo, etc, etc. Não adiantava, ela estava possuída pelo capeta, gritava e esmurrava o ar. Pegou repentinamente sua bolsa e, num gesto violento, levantou-se e falou: "Eu vou embora! Digam para aquele cretino nunca mais aparecer na minha frente!". Saiu resfolegando, bateu violentamente a porta do quarto e sumiu.

Ficamos ouvindo, silenciosos, o som dos seus sapatos altos que, como cascos de um cavalo, pisoteavam com força o chão de cerâmica do corredor. Um colega correu para a porta e ainda a viu descer a escada de entrada do hospital. Quando ele retornou ao quarto, explodindo em gargalhadas, apertamos nossas mãos em conjunto e demos do nosso grito de guerra. "Urra! Urra!". Tínhamos cumprido mais uma missão. Rimos bastante e, logo depois, chegou o nosso plantonista. Estava cansado e preocupado com seu paciente. Logo notou a ausência da namorada.

Nosso colega baixinho, com seu cinismo natural, explicou que ele havia demorado muito, mas que ela deixara um recado. Deveria ligar para ela, logo mais à noite e não poderia esquecer, pois ela tinha novidades para contar. O plantonista assentiu com a cabeça, mas estava com o rosto triste e o olhar vago. Sua preocupação estava com seu paciente na enfermaria.

O relógio do quarto bateu as seis badaladas do fim da tarde. Impulsionados por nossos sentimentos de culpa, vestimos nossos roupas e fomos, em junta médica, ver o paciente do colega. Cercamos a cama do enfermo, avaliamos o caso em conjunto e encorajamos o colega. Estava tudo certo. Ele iria melhorar e ficaria curado. Era uma questão de tempo. O plantonista ficou mais aliviado e conversou animadamente conosco. Mais tarde ele ligou para a namorada. Entrou no quarto e comentou que ela não quis atender ao telefone. Não estava entendendo aquela atitude, ela não era uma pessoa temperamental.

A nossa brincadeira não durou uma semana. O plantonista descobriu a sacanagem e explicou para a namorada como era a nossa vida naquele pequeno, mas animado quarto de hospital. No sábado seguinte ela voltou. Estávamos todos conversando preguiçosamente sobre as camas. O plantonista também. Ela entrou com um grande pacote nas mãos, era uma caixa onde havia um bonito e gostoso bolo de chocolate. O nosso plantonista estava trocando de idade naquele dia. Seu doente já estava andando normalmente e ele estava satisfeito com a sua recuperação.

A guerreira loura colocou a caixa em cima de uma cama, tirou o cinto da sua delgada cintura e saiu correndo atrás dos residentes. Todos pulavam de uma cama para outra, tentando livrar-se do ataque inesperado. Quase pisaram em cima do bolo. Conseguiu acertar várias chicotadas que, quando acertava nas costas, doía bastante. Ofegante, recolocou o cinto e falou: "Vocês são uns filhos da puta!". Xingou bastante. Daí a alguns minutos estávamos todos cantando os parabéns para o plantonista, bebendo refrigerantes e cervejas e saboreando o delicioso bolo de chocolate.






CAPÍTULO VI

A saída do hospital
Era o último ano de hospital. O sexto ano da faculdade era muito corrido. Os estágios, nas diversas clínicas, nos deixavam mais fora que dentro do hospital e do quarto dos residentes. Muitas vezes éramos apenas informados da evolução dos casos nos grupos de acompanhamento pelos outros colegas e de forma resumida.

No ano anterior havíamos feito, durante as férias de julho, um estágio intensivo de trinta dias, numa clínica do Rio Grande do Sul. Estávamos pensando em voltar após a conclusão do curso médico e ficar mais três anos nessa clínica para fazer uma residência complementar. Havia a possibilidade de conseguir uma bolsa de estudos para ir a Holanda fazer um curso de pós-graduação em psicoterapia.

De vez em quando parávamos em frente ao quadro pendurado na parede e líamos o texto de Péricles, o filósofo. Ele estava certo. Aquele e outros hospitais psiquiátricos teriam que acabar um dia. Estávamos no ano de 1970. Não era possível que os hospícios ainda fossem durar tanto.

Já no final do mês de outubro sentíamos coisas estranhas por dentro. Uma espécie de saudade antecipada do hospital, misturada com idéias novas, projetos ousados e a sensação de caminhar para formatura e se transformar em médico. Que metamorfose maluca era aquela, de um simples estudante virar médico do dia para noite?

O discurso oficial da nossa equipe era o de humanizar o hospital, organizá-lo para facilitar a ajuda e a aprendizagem, para depois destruí-lo como instituição segregadora de loucos. Já tínhamos percebido que o mito da loucura era um artifício falso. Não havia loucos naquele hospital, havia pessoas pobres, destituídas de poder, de cidadania e de família. Pessoas que reagiam desesperadamente para readquirir os seus direitos normais; de se considerarem e de serem considerados iguais a todo mundo.

Havia uma expropriação de poder. Os internados cediam seus poderes individuais para todos nós, em troca do nosso "direito" de considerá-los pacientes. Suas sanidades, embora existissem dentro de cada um, deveriam ser escondidas por nós, por detrás dos diagnósticos, dos remédios e dos eletrochoques. Suas sensações de desproteção e de abandono abalavam suas certezas de homens e mulheres livres. Nós éramos os loucos visionários que, através de nossa cegueira intelectual, transferíamos nossa doença mental para eles. Sem eles não conseguiríamos ter certeza sobre a nossa sabedoria, o nosso prestígio e o nosso poder. Tínhamos necessidade de "matéria-prima" suficiente para a manutenção do poder da cura, estatuto sem qual não pode existir psiquiatras, remédios e hospícios.

Como poderíamos estar sentindo saudades de um hospital que, nós mesmos, queríamos destruir; será que estávamos ficando loucos? Não sei se poderíamos estar ou não em crise. Às vezes tínhamos a impressão que, após a formatura, iríamos entrar para a ala masculina e ganhar a condição de pacientes com o direito à "tratamento adequado".

Nestes tempos de crise interna, um dos residentes teve um sonho: Eram dois hospitais que, ligados entre si, possuíam um só portal de entrada e saída ao mesmo tempo. Os que saíssem de um, ingressariam fatalmente no outro. Um era cheio de pobres, de médicos, de remédios, de estudantes e de enfermarias. O outro não tinha nada disso. Por ser maior, nele se viam carros, avenidas, hotéis, restaurantes e pessoas bonitas e poderosas. Eram loucos disfarçados de pessoas normais. Disputavam entre si seus poderes e riquezas. Viviam correndo de um lado para outro e não podiam perder tempo algum. Seus delírios de riqueza, prestígio e poder os deixavam tão ocupados e, porisso, nunca conseguiam parar nas esquinas das suas consciências para descansar seus espíritos. Eram loucos varridos estes do outro hospital! Nós também corríamos um grande risco. Deveríamos passar para o outro lado do portão e solicitar internação do lado de lá.

No exato momento em que ia transpondo aquele portão único, o residente acordou assustado e percebeu que estava deitado em sua cama. Ficou pensando no sonho e concluiu que não existem loucos, existem sim muitos mitos que mantém a idéia alucinada de civilização. Uma alucinação coletiva dos que, para se sentirem menos ameaçados, tiveram que delirar para criarem as idéias de segregação, desigualdade e doença mental. Nós também poderíamos estar delirando ao desejar passar mais três anos em outra clínica e viajar para o exterior em busca de mais doenças mentais. Só maluco pode trocar sua sanidade por sentimentos e desejos tão mórbidos.

Levantou e abriu o guarda-roupa. Tirou de lá todos os documentos e papéis que garantiam seu ingresso na clínica em Porto Alegre e a viagem para a Holanda e os foi rasgando um por um. Já não poderia se arrepender depois, se o seu delírio de viajar retornasse a sua cabeça. Uma semana antes ele havia conversado com um velho e experiente professor da faculdade. Ele era o catedrático da cadeira de clínica médica. Um homem sensato, ótimo profissional e excelente cidadão. Havia feito estágios no exterior e era simples no vestir, no falar e bastante atencioso com todos. Havia falado que no sexto ano era comum os estudantes apresentarem a "Síndrome do Delírio Profissional". Sonhavam alto, muito alto. Desejavam tornar-se, num passe de mágica, ilustres e famosos profissionais reconhecidos nacional e internacionalmente; mas que isso iria passando com o tempo, santo remédio para os grandes sonhos. Falou que quando alguém sai da universidade, encontra-se completamente preparado para começar a aprender.

A conclusão do curso universitário não é outra coisa senão um novo exame vestibular e permite ao recém-formado a oportunidade de estudar e aprender cada vez mais. A ilusão do "grande doutor" é mais um "trote" que os veteranos só descobrem depois da festa da formatura. Depois, curados do orgulho e da embriaguez da posse do diploma, descobrem que aquilo é um simples pedaço de papel, um contrato que obriga, o novo e famoso operário, a procurar humilde mente o seu primeiro emprego.

Falou que todo recém-formado deveria submeter-se a um longo trabalho prático no interior para poder consolidar os conhecimentos adquiridos na universidade. Disse que, enquanto os estudantes alimentam grandes projetos, uma legião de pobres, na Amazônia e no resto do país, padece das endemias mais corriqueiras como: malária, tuberculose, verminoses, lepra e das doenças da fome e da desnutrição. Todo recém-formado, antes de alçar seu grande vôo, deveria pagar seu tributo aqui mesmo, na terra onde nasceu, pelo privilégio de ter podido estudar e se formar em uma universidade federal gratuita. Porque contraiu uma dívida para com os pobres do país, aqueles que foram sua "matéria-prima" e os provedores do seu conhecimento. Não se deve investir em sonhos, é preciso que se ande com os pés grudados a terra nos primeiros anos da vida profissional - finalizou.

O residente voltou para o hospital, naquele dia, com a cabeça completamente desorganizada. Sonhos, certezas, realidades e dúvidas estavam todas misturadas e circulavam velozes como camisetas e bermudas no interior de uma máquina de lavar roupas. Depois que sonhou e rasgou os papéis dos estágios a cabeça melhorou. Já era novembro e dentro de poucos dias o mês iria acabar. Havia decidido não sair da Amazônia. Trabalharia por lá mesmo e pagaria sua dívida até que suas asas crescessem mais; ele ainda era um filhote, com poucas penas nas asas, tinha que aprender muito.

Os vários estágios do hospital-escola estavam no final e o clima da turma do sexto ano era de preparativos para o dia da colação de grau. No hospital Juliano Moreira o quarto dos residentes, os corredores e as enfermarias continuavam no ritmo de sempre. Ele deveria retirar seus pertences do guarda-roupa e ceder sua cama para o próximo ocupante. Era assim que tinha que ser. Na verdade eram três vagas que iriam abrir naquele ano. Ele e mais dois colegas do sexto ano, residentes do hospital iriam sair e provocariam com isso uma verdadeira renovação na população do quarto. Apenas dois colegas do quinto ano iriam ficar para orientar os novos candidatos a residente.

Chegou o mês de dezembro. Era um mês que prometia grandes emoções. A proximidade da conclusão do curso, a saída do hospital e o clima do Natal próximo estavam entrelaçados com a idéia de conseguir o primeiro emprego. Era como interromper bruscamente a adolescência e se tornar adulto, sem trocar a calça "jeans". Era como receber alta do hospital sem estar completamente curado, sentindo as pernas fracas e a cabeça tonta. Ele, que tinha visto tanto paciente deixar o hospital, se sentia agora como se pertencesse ao grupo da "abandonoterapia", sem diagnóstico e sem remédio algum.

Na última semana de hospital relembrou muito dos pacientes que ficaram gravados na sua memória. O homem dos sacos, o filósofo, o homem-árvore e de tantos outros que, na verdade, se constituíam em pedaços dele mesmo, fragmentos da vida e da insanidade de um residente interno. Muitas das solidões que acompanhou e ajudou a atenuar, estavam agora somadas dentro de si. Sentia-se muito só e não havia equipe para lhe socorrer na sua solidão. Ele era como o homem dos sacos que, agarrado aos seus sonhos, teria que abandonar sua família, catar papéis e documentos para se sentir seguro e perambular pela vida. Era um homem-árvore que, plantado dentro de si mesmo, não queria caminhar. Teria que fazer como Péricles: abrir a página de classificados e descobrir uma oportunidade qualquer. Estava perdido no presente, agarrado ao passado e com medo do futuro.

Chovia muito naquela manhã de dezembro. Era quinta-feira, dia da festa de fim de ano no hospital. Naquele dia haveria uma confraternização entre funcionários e pacientes do hospital. Haveria também a despedida dos estudantes que encerravam o período de residência. A sala de reuniões estava cheia de gente. Seus olhos, molhados de emoção, viam funcionários, colegas, médicos e pacientes, todos embaçados. Abraços, cumprimentos, despedidas e brincadeiras não foram suficientes para distrair a sua saudade. Foram três anos morando e vivendo ali. Ele não queria mais desinternar-se. Andou, pela última vez, por todas as dependências do hospital. Aqui e ali recebia e dava braços e cumprimentos, desejando feliz Natal e Ano Próspero para os que encontrava pelo caminho. Agora era um médico. A sensação que experimentava naquela última caminhada era diferente; como se pudesse ser, ao mesmo tempo, um médico, um paciente e um residente-plantonista estrangeiro, que caminhava pelos corredores e enfermarias, tendo a impressão que já conhecia tudo aquilo antes. Ele mesmo teria que cuidar da sua doença e do seu último plantão.

A festa terminou, os cumprimentos e despedidas se esgotaram e ele sentia suas pernas descendo, lentamente e a contragosto, a escadaria na frente do hospital. Pela janela do carro seu coração apertado olhava com tristeza a fachada do prédio hospitalar, enquanto o motorista do táxi, impaciente, perguntava pela terceira vez: "Para onde, doutor?". Apenas sinalizou com o dedo apontado para frente, porque, como o Pedro, não podia mais falar naquele momento. Se pudesse, teria dito: "Para a Vida, companheiro!".








Profecia, ruínas e missão cumprida
O residente já estava cinco anos mais velho e tinha trabalhado em diferentes lugares, quando resolveu voltar à sua cidade e visitar o hospital. Sentia-se como aqueles pacientes que, de vez em quando, vinham visitar o quarto dos residentes. Já era casado e possuía um carro próprio.

Parou em frente ao hospital e viu um enorme vazio. Ele já não existia mais. Havia sido demolido há algum tempo. Apenas pedaços de tijolos e restos de alicerce, sobraram naquele lugar deserto. Parecia mais um cemitério abandonado. Ali estava sepultada, para sempre, a sua memória de estudante.

Lembrou do filósofo Péricles e da sua profecia escrita no quadro pendurado na parede do quarto. Poderia muito bem servir de epitáfio para aquele monte de túmulos destruídos. O sentimento de perda ainda existia, mas já era menor do que o de alegria. Havíamos realizado nossa última missão. Aquela destruição representava o nosso sonho de vitória. E os "loucos" onde estariam agora?









Discurso civilizado e idéia de reconstrução

Todos os fenômenos que ocorrem sobre a face da Terra poderiam ser classificados, com simplicidade, em dois grandes grupos:

1. Os que se relacionam com o comportamento humano.

2. Os que não se relacionam com o comportamento humano (fenômenos da natureza).

O comportamento humano é moldado segundo a cultura dos povos. Desse ponto de vista podemos classificá-lo em mais dois grupos:

1. O comportamento dos povos civilizados.

2. O comportamento dos povos primitivos.

Sabe-se que, atualmente, existem reduzidas populações do que se convencionou chamar de "povos primitivos" (sociedade humanas naturais) e que o planeta foi ocupado, em quase sua totalidade, pelo que se conhece como "culturas civilizadas".

Na realidade não existe uma autêntica cultura civilizada. O conceito de cultura, embora amplo, poderia ser traduzido como o resultado total de conhecimentos, crenças, artes, moral, leis, costumes e quaisquer outras aptidões e hábitos adquiridos pelos homens, como membros de uma sociedade ou grupo. Na verdade um "modelo cultural" relativamente estável deve seguir regras harmoniosas na sua evolução, para ser reconhecido e respeitado pelos membros desse modelo. Essas características próprias de cada modelo ancoram-se no que se costuma chamar de "tradição do modelo cultural". A síntese de um modelo cultural está representada por suas "características de tradição". Esse conjunto de características exerce forte influência sobre os membros pertencentes a cada modelo cultural e se reflete na base informativa e formativa do comportamento individual. Sendo assim, cada indivíduo é levado a se comportar segundo as características (sentimentos, princípios e valores) do modelo ao qual se encontra ligado. Como cada indivíduo possui seu próprio mundo psíquico, esse psiquismo está sujeito às normas, variações e organizações (ou desorganizações) do modelo cultural em que se situa e com o qual interage.

Foi a partir de 1972 que, seguindo essa linha de pensamento, iniciamos uma observação mais minuciosas do comportamento humano, através dos conceitos de Comportamento Ativo e Comportamento Reativo, ambos relacionados ao meio sócio-familiar-cultural, onde se situam os indivíduos. Percebemos que as pessoas agem e reagem frente a situações do meio ambiente externo (família, sociedade, cultura) e interno (psiquismo individual). Que as formas de agir ou reagir, são tentativas de readaptar-se ou protestar; que geralmente estão ligadas a sobrevivência física e emocional; que o intercâmbio entre esses meios é a única e singular forma de existência e convivência individual com o social. A vida de cada um de nós, circula entre esses dois pontos em busca de equilíbrio. A base que sustenta a nossa atuação no teatro da Vida é a Biosfera (meio ecológico), onde várias outras formas de vida e de meio físico também existem para garantir nossa existência.

A proposta do conceito de Comportamento Ativo serve apenas para representar a conduta humana harmoniosa e equilibrada que permite a convivência construtiva e ativa entre indivíduos e, destes, com o meio social e ecológico. O Comportamento Reativo, nos seus diferentes graus de intensidade, representam a conduta humana reativa, isto é, inadaptada, insatisfeita e não-equilibrada em relação ao meio interno (psiquismo), ao externo (família, sociedade, cultura) e a base que os sustentam (meio ecológico).

O comportamento humano não deve ser considerado só do ponto de vista estático, ou seja, com base apenas nos fenômenos intrapsíquicos, genéticos, enfim, de natureza estritamente individual.

A idéia de tentar conceber um mundo perfeito, absoluto, acabado e centrado no individual é a própria negação da evolução vital; é negar a convivência das pessoas a partir de suas próprias diferenças individuais. É a loucura do isolamento e da solidão, que não é desejada por ninguém. Um homem não vive só, uma família não existe só. Ninguém suporta ficar só, por que a vida é gerada de duas pessoas e se espraia inevitavelmente nos grupos sociais, com seus modelos próprios.

Por que as pessoas, muitas vezes, se sentem solitárias dentro de suas famílias e no meio da multidão? Estar rodeado de outros indivíduos e sentir-se solitário não seria um fenômeno relacionado ao mundo interno (psiquismo) e ao mundo externo (família, sociedade, cultura)? Como lidar com esse aparente paradoxo?

O homem civilizado aprendeu a ser classificatório e individualista. Aprendeu a rotular e separar seus rótulos em diferentes gavetas; e essas gavetas precisam permanecer isoladas. Desaprendeu as lições da vida em comum e aprendeu a organizar seu psiquismo através de processos intelectuais com base na razão. Sua emoção, solidariedade e intuição foram engavetadas numa outra estante do inconsciente e pouco valorizadas, por não possuírem utilidade prática e imediata no mundo civilizado.

Agora é possível compreender por que foram criados os diagnósticos psiquiátricos, os remédios e as instituições, projetadas para guardar e prender a loucura humana e isolá-la do mundo produtivo. O homem atual não consegue conviver com suas fraquezas e erros, próprios da sua natureza. Ele tenta projetar-se de forma megalômana, numa imagem de perfeição narcisista, auto-suficiente, sapiente e onipotente. Ele tenta negar sua natural animalidade e pequenez diante de si próprio e de outras formas de vida existente na Terra. Ele se esforça para esquecer que, um dia, há pouco tempo atrás, pertenceu a uma sociedade que atualmente chama de primitiva. O homem moderno empresta ao termo "primitivo" uma conotação pejorativa e inferior, mas não consegue organizar-se e construir um modelo cultural equilibrado e sem problemas, que já possuiu, quando ainda era um "ser" naturalmente primitivo.

Quando conversamos com pessoas fisicamente saudáveis, com razoável formação intelectual, boas condições materiais, e que se queixam de solidão dentro de suas famílias e na sociedade, podemos pensar: Será que essa pessoa está sentindo saudade de alguma coisa importante para ela? Depois de ter adquirido e acumulado todas as materialidades necessárias à sua existência, o que ela deseja obter mais, para não se sentir tão solitária?

Enquanto não possuirmos provas concretas em contrário, podemos continuar acreditando que a aquisição de bens materiais, prestígio e poder não são suficientes para aplacar os sonhos, desejos e ânsias do espírito humano. Talvez seja melhor acreditar que a existência de um "modelo cultural" relativamente estável e equilibrado seja uma necessidade básica, fundamental para a convivência em "estado de riqueza", onde competição e ganância possam estar substituídas pelo amor e pela crença na solidariedade dos grupos e das sociedades humanas. Não acreditar nisso é descobrir - o que atualmente vemos - o segredo da existência da miséria, da fome e da loucura entre nós, os civilizados. O grande objetivo, a síntese e o foco que iluminam o sentido da Vida reside na forma pela qual os homens se organizam e organizam seus sentimentos, princípios e valores, para viverem e conviverem e grupos.

A "perda cultural" significa para o homem civilizado o que a "despersonalização" significa para o esquizofrênico - a desorganização e o estado de confusão. O esquizofrênico não é o um "doente mental", uma pessoa que nasceu com "defeito de fábrica"; ele apenas expressa, com seu comportamento, uma denúncia pessoal, um protesto contra a desorganização do modelo cultural e familiar, no qual não mais deseja conviver sem reagir. Ele apenas corta contato provisoriamente com o grupo familiar e social que provocou a desestruturação da sua personalidade. Seu "comportamento reativo" cobra da sociedade e da família mudanças adequadas à sua reinserção na vida sóciofamiliar. Ele é o ponto sensível, a linha que se rompe primeiro para mostrar o caos da convivência.

As fobias são comportamentos reativos simbólicos, que se projetam para o exterior e deslocam seu verdadeiro significado, identificando em insetos, objetos e situações, causas que possam justificar os medos e temores pessoais. Estão sempre camuflando as verdadeiras crises reativas do psiquismo. Essas reações podem estar denunciando, através desses códigos simbólicos, as insatisfações, o medo e a insegurança pela própria vida. que seus portadores experimentam. Não ouvimos falar de fobias entre as sociedades naturais. Seus medos são claros e organizados ritualmente. São identificados nos fenômenos naturais, situações reais de perigo e abstrações de caráter religioso, perfeitamente compreensíveis. Não vemos, entre eles, moléstias nervosas ou mentais. Não é freqüente possuírem homicidas, suicidas, prostitutas, drogados, assaltantes e mendigos. Eles sabem, por intuição, que um modelo cultural bem organizado pode evitar tudo isso.

O Comportamento Ativo é sinônimo de: sintonia, adequação e integração estável entre indivíduo e grupo social. A ação individual se comporta dentro do modelo para colaborar com seu equilíbrio e aprende a conviver bem com ele. O oposto disso resultaria no Comportamento Reativo As alterações do psiquismo e, por conseqüência, do comportamento humano, se movimentam dinamicamente na direção dos desvios e das anomalias do meio circundante, onde os indivíduos nascem, crescem, convivem aprendendo, e morrem.

Compreendemos bem o porquê das tentativas e das buscas incessantes do homem civilizado para manter o Estado e suas instituições em equilíbrio. O dilema do civilizado está encravado no "desejo de parasitar" o modelo em que vive sem matá-lo completamente. Enfraquecendo-o apenas. Seu desejo de depender do Estado e dos outros indivíduos, para deles retirar vantagens, o aprisiona na condição de parasita e o faz perder sua autonomia e dignidade. Essa angústia reside no fato de perceber que ninguém vive sem modelo grupal. Ninguém vive só.

Produzir sempre muitas leis, muitas religiões, muitas tecnologias e muitos códigos morais dá para desconfiar. Alguma coisa não vai bem conosco. É preciso repensar nosso modelo e nossas regras de convivência. Ninguém deve se orgulhar de pertencer a essa "civilização", mas deve preocupar-se com seu futuro, pois, nela, vivemos e convivemos com nossa família, amigos, conhecidos e desconhecidos. Não devemos reagir contra ela. Devemos agir, colaborando sempre, para uma mudança na base qualitativa do convívio humano. Todos amam a Vida, pois é nela que circula o maravilhoso fenômeno da relação social.

Por causa da "perda cultural", situação complexa sobre a qual o homem moderno não tem acesso e tampouco parece interessar-se, ousamos, certa vez, pensar. Talvez uma idéia inovadora, talvez uma utopia. Sonhando, fomos construindo o mito da integração de um novo mundo. Um mundo onde se conseguisse compor e juntar as partes boas e sábias dos povos primitivos e as partes boas e sábias do mundo civilizado. Daí poderia surgir a base de um "novo modelo cultural" que permitisse resgatar os desvios provocados pelo processo civilizatório e emprestar novas ferramentas para a convivência pacífica entre indivíduos.

É possível falar da idéia - mas não dos projetos - para essa reconstrução, pois eles ainda circulam nas cabeças cheias de esperanças de muitos homens, sem soluções definitivas. Sonho do presente ou realidade do futuro? Não sabemos. Mas podemos acreditar em coisas, como: a evolução cíclica do universo e a capacidade criadora do homem. Pensando bem, estamos a tão pouco tempo na Terra, que acabamos não tendo certeza em que fase do desenvolvimento nos encontramos. Se for preciso recomeçar tudo de novo, aqui estamos para oferecer voluntariamente nossa ajuda nesse mutirão.

A Civilização não pode continuar esmagando o homem. O Estado Moderno, com suas instituições, não pode manter a cidadania humana amordaçada e transformada em simples figura de contribuinte passivo. Não somos peças mecânicas de u'a máquina produtora de bens materiais e nem consumidores dependentes de seus bens. Temos consciência e bom-senso para retomar nossa identidade e reter o poder, que cabe a cada cidadão, de decidir qual o melhor caminho para o futuro.

A instituição familiar não deve reprimir o comportamento reativo dos seus membros, mas refletir sobre suas verdadeiras causas. Deve aprender a lidar com a loucura, absorve-la e compreendê-la, para conseguir libertar sua voz. A família é uma instituição natural e indestrutível. Precisa juntar-se em grupos maiores e organizados, para exigir o poder e o respeito que merece e a que tem direito.

Nenhum Estado Moderno resgatará para o indivíduo os direitos da cidadania e da liberdade individual, porque o seu papel essencial é o de restringi-los. O Estado os deseja, os controla e sempre seu oporá a essa devolução. Os homens que representam o Estado Nacional, na sua maioria, nunca desejarão transferir o poder, para não perderem seus privilégios. Nenhuma ideologia política deverá ser seguida porque seus discípulos, sempre as utilizam como forma de controle do poder político centralizado. Nenhuma ideologia política, econômica ou religiosa contém dentro de si a essência da liberdade, pois, a liberdade não é feita de palavras ou de idéias, ela existe dentro de cada cidadão que queira falar, pensar e agir livremente. Todas as ideologias e formas de governos experimentadas até hoje pelo homem civilizado não conseguiram mudar o panorama do mundo atual.

Haverá de chegar o dia em que assistiremos à morte do Estado Moderno. A partir desse dia se iniciará um processo de reconstrução social, onde cada cidadão se tornará responsável, com direitos e deveres, para conviver em um novo modelo cultural. Veremos então o desaparecimento gradual das desigualdades, da violência, da fome, da solidão e da loucura. Quando esse dia chegar seria bom que ainda vivêssemos para assistir, de pé, o início dessa nova era para a humanidade.





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